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25 de abril de 2024

Nós Dois Sozinhos no Éter, de Olivie Blake, e o fenômeno dos romances entre pessoas quebradas


Olivie Blake, que na verdade se chama Alexene Farol Follmuth, é mais conhecida pela trilogia dark academia A Sociedade de Atlas. Em Nós Dois Sozinhos no Éter, Olivie retorna com uma proposta diferente: à princípio, se trata de um romance, mas o principal tema abordado é saúde mental. A autora, diagnosticada com Transtorno Bipolar, colocou muito de seus sentimentos e experiências no livro, como ela mesma diz nos agradecimentos.

Mas vamos à história. Em Nós Dois Sozinhos no Éter somos apresentados a Aldo e Regan. Ele é doutorando e professor universitário de Matemática, fechado e não se importa muito com o que pensam dele, o tipo low profile, e sua mente vive ocupada com cálculos e abelhas. Ela é formada em história da arte, trabalha como guia em um museu e tem uma personalidade caótica. Ele é ordem. Ela é caos. Eles se conhecem por acaso e ficam curiosos. Decidem matar a curiosidade tendo seis encontros para conversarem e decifrarem um ao outro. As conversas entre eles são inteligentes, o vínculo que eles estabelecem é de dentro para fora e um acaba se apaixonando pela mente do outro.

Eu tive alguns problemas com esse livro, muitos deles já tinham sido questões incômodas em A Sociedade de Atlas: a linguagem juvenil, os personagens caricatos e a imaturidade das relações. Aldo e Regan conversam tanto, tanto, tanto, e nunca falam sobre o que realmente importa. Me irrita o desejo de ter conversas profundas sem falar sobre sentimentos e intenções. Me irrita a romantização de relações problemáticas baseadas na ideia de que é emocionante ver pessoas se destruindo. Vi muitas comparações desse livro com Pessoas Normais e Cleópatra e Frankenstein e concordo totalmente porque, pra mim, esses três livros retratam pessoas imaturas e destrutivas em relacionamentos imaturos e destrutivos e perpetuam a ideia de que relacionamentos conturbados são mais emocionantes e dignos de serem retratados em livros e filmes. Como resultado, temos uma multidão de pessoas que se entediam com seus relacionamentos saudáveis e acham que uma vida sem emoções intensas não é uma vida legal. Inclusive, Regan deixa isso bem evidente quando diz: "normal é uma forma bacana de descrever algo entediante"

Ver beleza na decadência parece ser uma tendência que vem sendo ressuscitada. Quem lembra do Tumblr? Aquele rede social onde parecia que todo mundo era emocionalmente ferrado, drogado e/ou potencialmente suicida. Esse livro tem a perfeita vibe Tumblr. Inclusive, existe uma música chamada Tumblr Girls, do rapper G-Easy que diz: "Porque eu sou apaixonado por essas meninas do Tumblr / Com cinturas finas e envolvimento com drogas / Rostos bonitos amam status, ela age como se fosse a mais foda". Parece a trilha sonora perfeita para esse livro.

Quando penso em Nós Dois Sozinhos no Éter só consigo pensar na seguinte frase: seria lindo se não fosse trágico. Porque Aldo e Regan são pessoas muito fragilizadas e incapazes, ao menos nesse momento, de construírem uma relação sólida e saudável. Na verdade, Regan já tem um relacionamento, com um namorado de merda péssimo, mas ela também é uma pessoa péssima. E não por seu diagnóstico. Regan, assim como a autora, tem Transtorno Bipolar. O livro retrata sua relação com os medicamentos e mostra suas consultas psiquiátricas. Eu, como psicóloga, lido com pessoas com Transtorno Bipolar frequentemente. O Transtorno Bipolar é um transtorno de humor, que causa alterações de humor intensas que vão da depressão à mania. Na fase de mania, as pessoas se tornam impulsivas e, por vezes, inconsequentes. Mas não é isso que torna Regan uma pessoa difícil. Regan é egoísta, auto destrutiva e vive de mentiras e aparência, odeia a irmã porque a irmã não fracassou tanto quanto ela e parece sentir prazer quando as pessoas se dão mal, porque assim ela se sente menos pior consigo mesma.

Relações problemáticas precisam ser retratadas na ficção e eu não estou contestando isso. Assim como não contesto o fato de que pessoas com problemas emocionais podem se relacionar e, não intencionalmente, podem transferir seus problemas para o relacionamento. Isso é absolutamente normal. Mas qual seria a forma correta de fazer isso? Porque esse livro se vende como "uma história sobre amar por inteiro, mesmo estando aos pedaços" e eu não poderia discordar mais. Tem um momento no livro em que Aldo faz um discurso sobre Regan ser uma pessoa difícil. O discurso é super romântico, profundo, meloso e claramente tenta reforçar essa premissa de que eles se amam por completo. Só que faz sentido amar algo no outro que está claramente destruindo aquela pessoa e tudo o que ela toca? Numa relação madura e saudável, a gente não ama os problemas do outro, a gente identifica esses problemas e ajuda a pessoa a lidar com eles. Eu não amo a depressão de alguém, eu amo essa pessoa e ajudo ela a lidar com esse problema que faz mal à ela. Esse discurso de amar por inteiro é super imaturo. Perceber que a pessoa é problemática e difícil, que está claramente se destruindo, que não consegue construir uma relação que preste e amá-la por isso chega a ser bizarro. Na teoria, o discurso de "você não precisa ser consertada" é muito bonito, mas, na vida real, pessoas precisam de tratamento para questões específicas se quiserem viver uma vida de qualidade. Ignorar isso (ou pior: romantizar) pode criar um problema muito maior e, às vezes, irreversível. Afinal, pessoas com Transtorno Bipolar estão entre o grupo de risco para suicídio. Pesquisas indicam que "entre 30% e 50% dos brasileiros portadores de transtorno bipolar tentam suicídio, sendo que 20% conseguem o objetivo". 

Os problemas que surgem no livro são "solucionados" de formas tão superficiais que a suspensão de descrença precisa ser muito grande. Desde vencer a dependência química porque "meu pai me pediu para parar" até parar de tomar medicamentos psiquiátricos sem supervisão médica e ficar bem. Tomar medicamentos psiquiátricos pode ser um desafio muito grande, os efeitos colaterais são muitos e alguns são realmente insustentáveis. Porém, quando um medicamento não está te fazendo bem, você conversa sobre isso com seu médico, coisa que Regan, obviamente, não faz.

É um livro com uma linguagem muito poética, diálogos interessantes e cheio de curiosidades. A escrita da autora é bastante notável e ela alterna diferentes estilos narrativos ao longo do livro. Há capítulos com narrador e capítulos sem, há capítulos que parecem um fluxo de consciência e há capítulos que são praticamente só diálogos. Foi interessante. Deu um ar caótico ao livro que combina com a história. Creio que funcionaria melhor para a minha versão 10 anos mais jovem. O fato de eu ter 30 anos e ser psicóloga, infelizmente, me impediu de apreciar totalmente essa leitura. Mas isso não significa que tenha sido uma completa perda de tempo. É uma leitura agradável, o afeto que Aldo e Regan sentem um pelo outro é realmente palpável. Senti falta de saber mais sobre o Aldo e sua família. As conversas entre Aldo e o pai são incríveis. Aldo também tem uma personalidade intrigante e também enfrenta seus próprios problemas, mas suas questões acabaram sendo soterradas pelas questões da Regan. A questão é: basta ter um pouquinho de senso crítico pra entender que a história possui pontos muito problemáticos que se agravam ainda mais quando pensamos que o público alvo desse livro são os jovens. 

É fácil se identificar com eles porque eles estão quebrados e quem não está? Ela é caótica, ele não tem habilidades sociais. Ela é impulsiva e se isola quando não está bem. Ele é esquisito e meio depressivo. É um clichê sentimental e, de um jeito ou de outro, pessoas vão se identificar. Na página 247, Aldo diz:

Às vezes sinto que só estou esperando por algo que nunca vai acontecer. Como se eu só estivesse existindo dia após dia, mas que nada jamais vai ter importância. Eu acordo de manhã porque preciso, porque tenho que fazer alguma coisa, senão sou só um zero à esquerda, ou porque, se eu não atender ao telefone, meu pai vai ficar sozinho. Mas é um esforço constante, é trabalhoso. Todo dia eu preciso dizer a mim mesmo para sair da cama. Levante-se, faça isso, se mexa assim, converse com as pessoas, seja normal, tente socializar, seja legal, tenha paciência. Por dentro só sinto, sei lá, um vazio. Como se eu não passasse de um algoritmo que alguém determinou.

É tão genérico que eu chuto que pelo menos 80% do planeta vai se identificar com essa fala em algum momento da vida. O que eu estou tentando dizer é que: sim, é fácil gostar desse livro porque são personagens fragilizados e emocionalmente vulneráveis. Só que, olhando mais de perto, é possível perceber uma série de problemas. E tudo bem se você não quiser "olhar mais de perto". O romance é arrebatador, o drama é tocante e os diálogos são inteligentes. O problema é que quando Regan diz: "você me deixa ser eu mesma, e eu gosto de você quando você é você mesmo. Por que isso é ruim?" eu tenho vontade de tacar o livro na parede e gritar: "PORQUE VOCÊ ESTÁ DOENTE"

O livro é dividido em 6 partes e eu preciso dizer que a partir da parte 5 o livro fica muito bom. O relacionamento dos dois acelera na mesma medida que os pensamentos e comportamentos de Regan vão ficando alarmantes (quem diria que isso poderia acontecer após ela parar os medicamentos sem supervisão médica, não é mesmo?!). É quando Aldo finalmente começa a perceber que existe um problema com Regan. A autora soube demonstrar muito bem como funciona um episódio de mania e, certamente, se utilizou de suas próprias experiências para isso. O final do livro pode ser decepcionante pra quem prefere finais mais fechados e conclusivos. No geral, achei o livro irresponsável. Mesmo que a autora tente explicar algumas coisas nos seus agradecimentos, ainda acho que a mensagem final é bem preocupante.

Enfim, como vocês podem perceber, eu tive uma relação complexa com essa leitura. Eu gostei do processo de leitura e li rápido porque queria saber o que iria acontecer. Mas passei boa parte do tempo preocupada e revoltada com o livro. Uma leitura rápida não necessariamente é uma boa leitura. Assim como demorar muito pra ler um livro não necessariamente significa que o livro é ruim. No fim, recomendo a leitura para quem ficou curioso. Não é um livro que eu indicaria para meus pacientes ou para quem está num momento difícil, emocionalmente falando, mas também não acho que seja um livro de todo ruim.

Título Original: Alone With You in the Ether ✦ Autora: Olivie Blake
Páginas: 336 ✦ Tradução: Carlos César da Silva ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora
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5 comentários :

  1. Ainda não conhecia esse livro...
    E durante as primeiras linhas do post até me interessei mas conforme ia lendo, foi passando total o interesse e curiosidade.
    Não vai ser com Nós Dois no Éter que vou conhecer a escrita da autora

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  2. Ótima resenha, você esclareceu muito bem os pontos negativos do livro.Não fiquei com vontade de ler o livro, não achei um ponto positivo para querer ler o livro.achei preocupante um livro assim ter como público os jovens.

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  3. Como não sabia nada sobre o livro, foi uma grata surpresa ao ler tanto sobre ele!
    A imaturidade juvenil por vezes irrita mesmo rs mas ao mesmo tempo, traz aquela identificação nossa. Apesar de eu ser anti social a vida toda!
    Pessoas tem traumas intensos...cada uma reage à sua maneira.
    Com certeza é um livro que já desejo ler!!!!

    Beijo
    Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na flor

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  4. Interessante alguns pontos que mencionou. AInda nao li o livro, mas confesso que esse tipo de livro com "pessoas quebradas" quase sempre gosto muito.
    Curiosa pra ler esse!

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  5. Oieee,
    Não conhecia esse livro, só sabia sobre o outro da autora. A trama é meio caótica e meio que me deixou curiosa em ler. Os pontos as quais você citou vejo muitos livros que acabam romantizando esses assuntos sérios e triste ver isso acontecendo sabendo que muitas pessoas que vão ler, vai achar isso perfeito.

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