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25 de setembro de 2023

A Corneta, da pintora surrealista a Leonora Carrington, e seu diálogo com a velhice


"Aos noventa e dois anos e com a audição prejudicada, Marian Leatherby ganha uma corneta auditiva de sua melhor amiga. Com auxílio do aparelho, Marian descobre que seu filho, nora e neto tem planos soturnos: não suportando mais conviver sob o mesmo teto que ela, a família se articula para mandá-la a um asilo." Assim começa a sinopse de A Corneta. Então podemos classificar esse livro como um drama, certo? Bom, sim, até certo ponto. Porém, para compreendermos melhor o romance A Corneta, precisamos primeiro conhecer sua autora.

Leonora Carrington foi uma pintora surrealista. Suas obras nos remetem a Dali e Frida Kahlo, com sua atmosfera sombria e elementos estranhos. Para sua escrita, Leonora consegue transportar esse surrealismo de forma poética, com reflexões ácidas e provocativas. Acredito que Leonora escreva o tipo de livro que o TikTok chamaria de "fumaceira".

La Posada del Caballo del Alba, 1937

Posso dizer que sou uma grande fã de livros fumaceira (livros meio malucos). Estou Pensando em Acabar Com Tudo, Piranesi e O Mar Sem Estrelas são alguns dos meus favoritos dentro desse subgênero moderno. Portanto, quando vi A Corneta na livraria e li a sinopse, imediatamente me interessei.

As obras de Leonora transmitem a sensação de fuga da realidade através da arte e da imaginação. Refugiada da Segunda Guerra Mundial, Leonora passou por uma internação forçada em um hospital psiquiátrico. Suas expressões artísticas eram uma necessidade para ela, que já comparou o ato de pintar com o ato de comer. Conheceu a loucura de perto, mas afirmou ter conseguido escapar dela. De fato, Leonora parece ter sido uma figura fantástica e singular, que não exitava na hora de confrontar os valores vigentes, principalmente em se tratando do papel social da mulher. Com tudo isso em mente, como não desejar ver um pouco dessa personalidade forte em seu único romance, né?!

Artes, 110, 1944

Voltando ao livro: a corneta auditiva é apenas o primeiro de muitos elementos e objetos estranhos que aparecerão ao longo da história. Ao chegar na instituição para idosas, Marian se depara com uma construção estranha repleta de pessoas estranhas com regras e hábitos estranhos. Mistérios e enigmas vão surgindo e a história vai ficando mais louca a cada página. Mas não um louco confuso e difícil de entender. A loucura de A Corneta é divertida e cheia de simbolismos. Essas questões simbólicas parecem ser do gosto de Leonora, que, inclusive, adorava Tarot. Em muitos momentos durante a leitura eu percebi essa comunicação por sinais e símbolos, e foi legal ficar tentando seguir a linha de raciocínio da autora, pois é preciso embarcar um pouco na loucura da história para compreendê-la como um todo.

Eu adorei estar na mente de Marian. Ela é criativa e tem pensamentos interessantes e divertidos. Sua amiga, Carmella, consegue ter uma mente ainda mais estranha e as conversas entre elas eram divertidissimas. Fiquem com alguns pensamentos de Marian que eu destaquei durante a leitura:

Acho uma pena cometer suicídio depois de viver noventa e dois anos e não ter entendido nada.

Ninguém nunca ficaria entediado comigo, eu tenho alma demais.

Sofro muito com a ideia de que minha solidão possa ser tirada de mim por um monte de pessoas impiedosamente bem-intencionadas.

Estranho como a Bíblia sempre parece terminar em sofrimento e catástrofe. Volta e meia me pergunto como esse Deus tão raivoso e vingativo acabou se tornando tão popular.

Confesso que, depois da ida de Marian para o asilo, o livro me perdeu um pouco, por focar demais nos outros personagens e nos mistérios da instituição quando eu ainda estava desejando ver mais das reflexões de Marian. Por volta da página 150, o livro me ganhou de novo e foi muito interessante tentar desvendar os enigmas junto com a personagem. O desfecho do livro é incrível e conseguiu unir vários conceitos que eu amo e que não esperava encontrar aqui.

Terminei a leitura apaixonada pela Marian e pela Carmella e querendo ser amiga delas, querendo fazer parte desse grupo excêntrico e místico. A Corneta me fez refletir sobre o valor das coisas e sobre quem determina o valor delas. O valor dos animais, o valor da mulher e o valor da mulher idosa, por exemplo.

O livro conta com várias ilustrações, além de um belíssimo posfácio escrito por Olga Tokarczuk, autora de Sobre os Ossos dos Mortos e ganhadora do Nobel de Literatura. Inclusive, Olga diz, em seu texto, que "na ordem patriarcal, ao chegar à velhice a mulher se torna um incômodo ainda maior do que já era quando jovem" e eu não poderia expressar isso de forma mais concisa. De fato, foi uma deliciosa surpresa chegar ao fim dessa leitura e perceber que A Corneta é um livro feminista que apresenta ideias pagãs, além de ser um convite a liberdade e a excentricidade. É como se o livro dissesse: "Seja esquisito. Ser esquisito é legal".

A edição está linda, no padrão da Alfaguara. A ilustração da capa é da própria Leonora e transmite bem a vibe do livro. Gostei muito de ter feito a leitura desse clássico da literatura fantástica e de ter conhecido mais sobre essa artista.

Título Original: The Hearing Trumpet ✦ Autora: Leonora Carrington
Páginas: 216 ✦ Tradução: Fabiane Secches ✦ Editora: Alfaguara
Livro recebido em parceria com a editora
Ajude o blog comprando o livro através do nosso link!

23 de agosto de 2021

O Homem da Forca | Shirley Jackson

No dia 8 de agosto de 2021 completaram-se 56 anos da morte de Shirley Jackson, escritora norte-americana conhecida principalmente por suas obras de horror e mistério. Infelizmente, a autora não era muito conhecida até pouco tempo (ao menos no Brasil) e sua fama se deve especialmente à série A Maldição da Residência Hill, da Netflix, baseada em um de seus livros.

O Homem da Forca é o terceiro romance de Jackson publicado no Brasil, todos pelo Grupo Companhia das Letras. Ao tomar conhecimento desse lançamento, eu logo quis fazer essa leitura. Afinal, eu adorei as outras duas obras da autora e sabia que encontraria aqui a mesma áurea de mistério que encontrei nos lançamentos anteriores.

A primeira coisa que precisamos saber sobre as histórias da Shirley Jackson é que sempre há mais do que podemos ver. Sua escrita é densa e sombria e deixa no leitor uma tensão constante, esperando que algo ruim aconteça (e sempre acontece). As histórias da Jackson possuem aquela atmosfera agridoce que faz o leitor se sentir incomodado, apesar de ser difícil explicar o porquê.

O Homem da Forca me fez sentir esse incômodo desde as primeiras páginas, quando começamos a conhecer nossa protagonista, Natalie, e sua família. A dinâmica familiar é estranha, a relação de Natalie com os pais é estranha, o irmão de Natalie é estranho. Enfim, acho que deu pra entender que é tudo muito estranho, né?! E essa, com certeza, é uma característica das histórias dessa autora.

Também é fácil para o leitor perceber que Natalie possui uma mente sombria e perturbada. E como esse é um desses livros em que o leitor se encontra imerso na mente do personagem, a gente acaba dentro dessa confusão que é a mente de Natalie, onde realidade e fantasia (alucinação?) se misturam.

O ponto de partida dessa história é um evento organizado pela família de Natalie, a família Waite, para o pai dela, um escritor egocêntrico e prepotente. Durante esse evento, realizado pouco tempo antes de Natalie se mudar para a faculdade, uma coisa ruim acontece e isso vai fazer com que a mente de Natalie se torne ainda mais confusa. A garota, que já tinha a tendência de se perder em seus pensamentos e de imaginar acontecimentos e diálogos com vivacidade, fica ainda mais suspensa da realidade.

Confesso que o livro, apesar de ser muito bom, não conseguiu alcançar as minhas expectativas. Em A Assombração da Casa da Colina e Sempre Vivemos no Castelo, há o momento do clímax e eu senti falta disso em O Homem da Forca, que se mostrou mais linear e, ouso dizer, monótono. Dentre as várias histórias que transportam o leitor para dentro das mentes perturbadas das protagonistas, essa foi uma das que menos me conquistou, perdendo para, por exemplo, Eu Estou Pensando em Acabar Com Tudo, A Menina Submersa e Estamos Bem.

Porém, isso não abalou a minha admiração pela autora. Eu ainda acho a escrita dele genial e acho incrível a forma como ela consegue criar todo um clima de tensão através de sua escrita. Em se tratando de ambientação, Jackson está entre os melhores. A autora não precisa criar cenas gráficas ou assustadoras para deixar o leitor tenso ou assustado. Ela consegue fazer isso de um jeito muito sútil. Durante a minha leitura, em vários momentos eu tentei entender o que estava me deixando tão desconfortável e é difícil afirmar, pois é algo que fica implícito na escrita da autora. E isso é fantástico. Eu adoro leituras que me dão essa sensação e os livros da Jackson sempre me causam isso.

Uma coisa que eu gostei muito em O Homem da Forca é como é fácil se identificar com a Natalie, uma garota de 17 anos, prestes a ir para a faculdade e se sentindo insegura, solitária e confusa. Durante a leitura, eu destaquei vários pensamentos de Natalie com os quais pude me conectar, principalmente quando ela falava sobre se sentir solitária e ter dificuldade para se conectar com as pessoas.

Diferente dos lançamentos anteriores da autora, que saiam pelo selo Suma, O Homem da Forca veio pela Alfaguara. Como a maioria dos leitores que colecionam livros e adoram uma estante organizada, eu não fiquei muito feliz com essa mudança. Porém, a edição em si está boa em se tratando de diagramação. É um livro curto, com pouco mais de 200 páginas, mas a leitura não é tão rápida como pode parecer pelo tamanho. Afinal, se trata de uma imersão psicológica, o que sempre deixa a leitura mais densa. No geral, eu gostei dessa leitura, mas não tanto quanto gostaria e ainda prefiro os outros livros da autora. Acho que pra quem gosta do estilo narrativo de Jackson, O Homem da Forca é uma leitura interessante.

Título Original: Hangsaman ✦ Autora: Shirley Jackson
Páginas: 224 ✦ Tradução: Débora Landsberg ✦ Editora: Alfaguara
Livro recebido em parceria com a editora

5 de agosto de 2021

Senhor das Moscas | William Golding

Durante a minha leitura de Senhor das Moscas, em vários momentos eu me perguntei como seria a minha resenha. E começo a escrever ainda incerta sobre isso. Que livro estranho e confuso. Minha relação com essa leitura foi da indiferença à raiva, da confusão à admiração. Felizmente, pude terminar essa leitura sentindo que valeu a pena, mas não foi fácil chegar nessa conclusão.

Eu iniciei a leitura sabendo muito pouco sobre o enredo. Basicamente, eu sabia que era algo sobre crianças numa ilha. E os primeiros capítulos do livro não contribuem muito para situar o leitor. Eu custei a entender o que estava acontecendo, porque a história já começa no meio da ação, sem muito contexto ou introdução. O que nós sabemos é que, num contexto de guerra, um avião caiu numa ilha desabitada e agora um grupo de crianças, todos meninos com idades entre 6 e 12 anos, se encontra sem a supervisão de nenhum adulto em um lugar de sobrevivência incerta.

Durante toda a primeira metade do livro, eu estava totalmente confusa e indiferente. Eu só conseguia ver um grupo de meninos chatos numa ilha. E demorei a me apegar aos personagens, que vão se tornando mais interessantes a medida que perdem a infantilidade (um pouco cruel dizer isso, mas é verdade). Porém, tendo finalizado a leitura, posso afirmar que fui ingênua ao não perceber os sinais sutis que o autor estava me dando de que havia algo mais nessa história desde o início.

Diferentemente da minha opinião comum, de que é melhor iniciar uma leitura sem saber muito sobre a obra, para Senhor das Moscas eu senti falta de um texto introdutório ou de uma apresentação. Eu sinto que teria aproveitado muito mais o livro se eu soubesse de algumas coisas. Portanto, vou tomar a liberdade de mencionar algumas dessas coisas aqui. Dessa forma, se estiver nos seus planos fazer essa leitura, acredito que ela vai ser mais proveitosa.

Primeiramente, sobre o autor: Golding, antes de se aventurar na escrita de romances, era um poeta. Portanto, sua escrita, mesmo na prosa, tem um quê de poesia, especialmente nas descrições da natureza. Golding também lutou na Segunda Guerra Mundial, experiência que certamente lhe deixou traumas e marcas psicológicas, o que também aparece em seu texto.

Mas o que eu mais gostaria de ter conhecimento antes de iniciar essa leitura (será que sou muito desinformada por não saber disso antes?) é que Senhor das Moscas é a tradução do hebraico Belzebu. Sim, o demônio Belzebu. E minha maior dica para quem pretende ler esse livro curto, de cerca de 200 páginas, mas profundo em suas entrelinhas é: pesquise sobre Belzebu, tanto sua origem mitológica, quanto sua representação no cristianismo, sua relação com moscas, trovões, crueldade e gula e os sacrifícios que eram realizados em seu nome. Você certamente vai pegar várias referências ao longo de todo o livro.

Porém, estando eu sem esse conhecimento prévio, preciso dizer que o livro só se tornou interessante lá pela página 110, quando coisas realmente começam a acontecer e a história deixa de ser apenas a rotina dos meninos na ilha. Não que acompanhar essas crianças na ilha tenha sido de todo desinteressante. Afinal, é intrigante acompanhar a dinâmica entre eles, as tentativas de restabelecer a ordem em um ambiente sem civilização e a forma como o clima vai ficando cada vez mais tenso conforme o tempo passa, o cansaço e a fome aumentam e as esperanças de um resgate diminuem.

O leitor, juntamente com os meninos, se questiona: qual a forma mais segura de se manter são? Ceder aos instintos e à selvageria, aceitando a realidade em que eles estão e se adaptando ao que a vida na natureza exige? Ou se esforçar para manter a civilidade e as regras sociais e continuar acreditando que eles serão encontrados? Qual alternativa enlouquece menos? A questão da sanidade mental permeia todo o livro, apesar se eu sentir que na primeira metade faltou um pouco de aprofundamento psicológico, o que melhora na segunda parte da história.

A obra parece realmente ter a intenção de ser um estudo social, onde a principal pergunta a ser respondida é: como se comportam crianças que são colocadas em um ambiente onde a civilização e a civilidade não existem? E confesso que tive momentos de questionar se aquelas crianças não tinham sido colocadas ali propositadamente? É apenas o autor fazendo um estudo social ou, na realidade do livro, um estudo social estava mesmo sendo realizado?

Senhor das Moscas também é um livro sobre a maldade humana, o que é compreensível se pensarmos que foi escrito logo após a Segunda Guerra Mundial por um ex-soldado. Ou seja, as esperanças na humanidade, a crença na bondade humana e o romantismo não estavam em alta.

O livro todo deixa um ponto de interrogação pairando sobre a cabeça do leitor. Página após página, eu ficava me perguntando: "o que eu não estou vendo?" ou "o que eu estou deixando passar?", porque são várias as coisas que não fazem sentido e que, sem as informações certas, eu cheguei a acreditar que eram incongruências e inconsistências na história.

Uma ilha deserta que oferece tantas chances de sobrevivência? Crianças matando porcos selvagens? Frutinhas supostamente comestíveis, mas que nenhum deles nunca viu antes? Qual pode ser o real efeito dessa fruta que eles comem indiscriminadamente? Água doce e fresca para beber? Se o avião caiu, onde estão os destroços? E por que as crianças sentem, o tempo todo, como se estivessem sendo observadas?

Poucos livros clássicos podem ser lidos, compreendidos e apreciados sem um bom texto de apoio. Senhor das Moscas é um exemplo disso. Sem minhas pesquisas adicionais, eu teria achado o livro, no máximo, interessante, mas, com minhas pesquisas, eu o achei incrível. Então, sim, eu acho que a editora poderia ter investido numa boa apresentação, ou até mesmo em algumas notas de rodapé. Isso teria tornado a leitura mais rica e completa.

Sem nenhum texto complementar, a nova edição de Senhor das Moscas é simples. O trabalho gráfico é de qualidade, a diagramação é confortável e eu gostei da tradução, principalmente se levarmos em conta que a escrita poética do autor exige uma boa tradução para que esse aspecto não se perca. Porém, preciso dizer que não gosto dessa capa e prefiro a capa antiga, que também saia pela Alfaguara, mas compreendo o apelo que a capa nova tem.

Com sua primeira metade mais lenta, Senhor das Moscas não foi uma leitura 5 estrelas pra mim, mas me ganhou por seus simbolismos e elementos fantásticos, o que eu não estava esperando. É o tipo de livro que permanece na mente do leitor por muitos dias após o fim da leitura, pra ser analisado, teorizado e revivido. Suas passagens mais grotescas, quando a ingenuidade infantil se perde, dando lugar à insanidade e violência, ainda ecoam na minha mente e sei que irão ecoar por muito tempo. Em poucas palavras, posso resumir esse livro com: memorável, perturbador e mais profundo do que parece.

Título Original: Lord of The Flies ✦ Autor: William Golding
Páginas: 216 ✦ Tradução: Sergio Flaksman ✦ Editora: Alfaguara
Livro recebido em parceria com a editora 

25 de maio de 2020

Lolita | Vladimir Nabokov


Lolita é um desses casos em que um livro transcende a barreira da literatura e se torna um elemento cultural com vida própria. Quem nunca ouviu falar de Lolita? O romance de Nabokov é, com certeza, uma das obras mais polêmicas e debatidas da literatura. Afinal, é impossível terminar de ler Lolita e não se sentir inclinado a conversar com alguém sobre o livro. E é isso que vim fazer aqui. 

Minha primeira leitura de Lolita foi há muitos anos, e sempre me deixou com aquele sensação de que eu não tinha absorvido tudo que essa história tem a oferecer. Então, decidi reler e, realmente, quanta coisa há nesse livro e quanta coisa precisa ser debatida.

Lolita já foi descrita como uma história de amor, de pedofilia e de obsessão. Os debates que o livro levanta são intermináveis e sempre rendem muito. Quero começar dizendo que não existe história de amor se uma das partes envolvidas tiver 12 anos. Eu concordo totalmente que Lolita é uma história sobre pedofilia e sobre obsessão, mas também acho que não para por aí. Tem muita mais coisa nessa obra.

Mas vamos do início. O básico a maioria das pessoas já deve saber: o livro é narrado por Humbert Humbert e se trata, na verdade, de uma confissão. No início do livro, o leitor já descobre que Humbert morreu na prisão enquanto aguardava julgamento por um crime, crime este que o leitor não sabe do que se trata, e deixou o livro pronto para ser publicado. Então, H. H. nos conta sua história pelo seu ponto de vista, é claro. E aqui nós temos a primeira grande questão desse livro: Humbert é, muito provavelmente, o narrador não confiável mais conhecido da história da literatura. Ele nos conta toda a sua história e narra como se tornou um pedófilo. E ele sabe que é um pedófilo. Porém, ele tem uma teoria bizarra sobre ninfetas: demônios que assumem a forma de meninas para seduzir homens mais velhos. E essas ninfetas costumam ter entre 9 e 14 anos. Olhem esse trecho:

[...] precisa haver uma lacuna de muitos anos, nunca menos de dez, eu diria, geralmente trinta ou quarenta, até noventa em raros casos, entre donzela e homem para que este possa ser vitimado pelo feitiço de uma ninfeta.

E é em cima dessa ideia que Humbert elabora seu depoimento, sempre argumentando que as ninfetas provocam os homens. E em determinado momento de sua vida, Humbert conhece Dolores, que ele chama de Lolita, a filha da sra. Haze, que aluga um quarto para Humbert. A partir daí, o leitor acompanha a obsessão de H. H. por essa garota e como esse ser maligno seduz o coitado do homem (contém ironia).

A coisa toda vai tomando uma proporção tão grande e tão assustadora que eu precisei ler essa história em pequenas doses. Minha revolta e meu nojo eram tão grandes que era difícil ler sem parar por muito tempo. Como eu disse, Humbert é um narrador não confiável, mas ele, em vários momentos, deixa escapar algumas informações que permitem que o leitor perceba (e só não vê quem não quer) que a menina está completamente desconfortável e infeliz.

Além disso, Humbert tem algumas falas que são de enlouquecer o leitor. Ele fala de si mesmo na terceira pessoa, se define como um homem muito bonito, que chama a atenção de mulheres e de ninfetas e discorre o tempo todo sobre como ele é um homem bom, que respeita as "crianças comuns" e que jamais agiria se não fosse provocado.

A escrita do Nabokov é realmente diferenciada e ele escreve de forma muito poética. O livro não é narrado de forma explícita, não se trata de um livro erótico como muitos pensam. Inclusive, algumas partes eu precisei reler várias vezes pra conferir se eu tinha entendido certo. Então, é realmente um livro que requer atenção. Eu não diria que é um livro de narrativa difícil, a narrativa é rebuscada sim, mas não difícil. Difícil é o conteúdo.

O livro tem quase 400 páginas e se manteve interessante do início ao fim. Eu não lembrava o desfecho da história, então, minha releitura foi empolgante como uma primeira leitura. No entanto, senti que o ritmo da história caiu um pouco no final e não foi tão interessante como o restante do livro pra mim.

Acompanhar os pensamentos de Humbert é torturante, e ver as coisas pelo ponto de vista dele chega a confundir a cabeça do leitor. É muito sutil a forma como a narrativa nos confunde. E tudo isso faz parte da genialidade dessa obra. O autor quer te confundir, quer fazer você sentir empatia por Humbert e, principalmente, quer fazer você colocar a culpa na Dolores. Por isso é um livro cansativo, , porque força o leitor a pensar, porque o leitor precisa parar a leitura a todo momento pra poder refletir sobre o que leu, e refletir de forma crítica e atenta, não basta apenas absorver o que o narrador diz.

Recomendo, mas com cautela. Se você é sensível a temas como pedofilia e abuso sexual, eu não acho que seja um boa escolha de leitura. Certamente, Lolita é um livro que marca a vida do leitor, então, se você está preparado e disposto a mergulhar na mente perturbada de Humbert Humbert, se joga!

Título Original: Lolita ✦ Autor: Vladimir Nabokov
Páginas: 392 ✦ Tradução: Sergio Flaksman ✦ Editora: Alfaguara
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8 de maio de 2020

O Grande Livro dos Gatos | Vários Autores


Livros de contos não costumam entrar com frequência no meu repertório. Não é que eu não goste, mas dou total preferências para histórias mais longas, com mais tempo de desenvolvimento, o que não é o propósito dos contos. Porém, como admiradora de gatos que sou, não podia deixar de dar uma oportunidade para O Grande Livro dos Gatos, o que foi muito bom, porque acabei aproveitando bastante a leitura. 

Nessa coletânea foram reunidos 17 contos clássicos de autores muito conhecidos por nós, como Lucy Maud Montgomery — ela mesma, a criadora da tão amada Anne de Green Gables —, Charles Perrault, Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Arthur Conan Doyle, por exemplo. Então, sim, temos autores de gêneros diferentes escrevendo sobre esses bichanos que tanto amamos.

É sempre uma tarefa bastante complicada falar sobre contos, porque qualquer coisa que a gente fala pode ser spoiler, então só me resta falar sobre os meus sentimentos durante a leitura. Apesar de falar no parágrafo acima sobre gêneros diferenciados, acredito que o foco de O Grande Livro dos Gatos é a fantasia, com um pouco de mistério e terror. Eu adoro fantasia, mas fico um pouco desconfortável com coisas mais sombrias e macabras. Por exemplo, o conto de Edgar Allan Poe, O Gato Preto, me deixou até com um pouco de medo, rs. 

Em compensação gostei especialmente das duas histórias de Edith Nesbit, A Fase Felina de Maurice e A Gata Branca. Ambos são bem levinhos e carregam um tom de fábula muito agradável e nostálgico. E por falar nesses sentimentos, impossível não citar O Gato de Botas, conto de fadas tão presente na infância de várias pessoas, inclusive na minha. Fiquei deveras feliz, porque são sensações como essas que gosto de ter ao ler um livro. 

Com exceção de dois ou três contos, O Grande Livro dos Gatos me agradou bastante, algo que não esperava em tamanhas proporções, diga-se de passagem. Apesar de carregar narrativas bem distintas, elas possuem algo em comum: agilidade na escrita. A gente mal pisca e o livro já terminou. Ah, além disso, de alguma forma, todos exaltam esses habilidosos e astutos felinos.

Título Original: O Grande Livro dos Gatos  ✦ Capa e Ilustrações: Ale Kalko
Páginas: 216 ✦ Preparação: Cristina Yamazaki ✦ Editora: Alfaguara
Livro recebido em parceria com a editora

31 de dezembro de 2019

Arquivo das Crianças Perdidas | Valeria Luiselli

Não sei exatamente o que me fez pedir esse livro. Sempre me pergunto o porquê de eu sempre pedir livros que não são exatamente dos gêneros que estou acostumadas a ler, principalmente porque até tento, mas não gosto da maioria deles — seria eu uma ignorante? O ponto é que Arquivo das Crianças Perdidas chegou em minhas mãos em um momento que não pude dar a atenção que ele merecia. Tentei lê-lo várias e várias vezes, mas alguma coisa sempre me impedia de continuar. Prometi para mim mesma que essa seria a última chance e, olha que coisa louca, parece que o livro me ouviu. 

Eu tinha plena consciência de que o livro não era ruim, que o problema estava comigo. E tá tudo bem, gente. Às vezes a história é tão densa que não conseguimos avançar na leitura dependendo do que está acontecendo conosco naquele momento. Foi por isso que demorei para mergulhar de vez nas páginas da obra de Valeria Luiselli. Aqui, conhecemos uma família que é igual à todas as outras, mas diferente: o homem tem um filho e a mulher uma filha, ambos de relacionamentos anteriores, mas que agora são filhos dos dois e ponto final.

O enredo, de forma geral, é bastante simples: um casal com seus problemas de casal atravessando os Estados Unidos de carro em uma viagem de férias de fachada, carregando umas bagagens, caixas e, é claro, os filhos à tiracolo. O real motivo da viagem é o campo de estudo do pai, que é uma espécie de historiador que registra sons do cotidiano. No momento, seu alvo são os Apaches, povos nativos dos Estados Unidos que, antigamente, ocupavam territórios no Arizona, e é por isso que eles estão indo para lá. Nesse meio tempo, a mãe quer trabalhar no seu próprio projeto, salvar crianças imigrantes —  ou pelo menos documentar suas histórias — que simplesmente "desaparecem" assim que cruzam a fronteira para o país.

Assim, como o próprio nome indica, Arquivo das Crianças Perdidas se trata essencialmente de um tema extremamente relevante e atual, a imigração. No contexto em que se passa a história, a crise imigratória é discutida em todos os meios possíveis, rádio, televisão, jornais. É justamente por isso que incomoda tanto a mulher, uma das narradoras, principalmente porque teve contato recentemente com uma problemática envolvendo crianças imigrantes. Além disso, temos de plano de fundo uma crise familiar que constantemente ameaça explodir.
Engraçado que a todo momento tive a sensação de estar viajando com os personagens, tamanha a veracidade da narrativa. Toda a obra é riquíssima em detalhes, além de ser rodeada por inúmeras referências literárias e musicais, como O Senhor das Moscas e provavelmente toda a discografia de David Bowie, que enriquecem a experiência literária de forma imensurável. Apesar do tema complexo — não por ser difícil de entender e sim por ser muito triste —, Valeria Luiselli mostra sua intimidade com a escrita a partir da fluidez da obra. Pode parecer contraditório falar sobre a facilidade de ler um livro em que tive que insistir punhado de vezes, mas gostaria de frisar, novamente, que o problema estava comigo. Poucas vezes em minha vida de leitora tive contato com uma história tão bem escrita e que me tirasse tanto da minha zona de conforto. 
É importante citar que os protagonistas de Luiselli não possuem nome, mas gosto de dizer que não são necessários, pois os conhecemos de forma muito mais íntima que um nome. A narradora, por exemplo, é dona de uma inteligência fora do comum, bem como a menina, que não se cansa de fazer perguntas extremamente difíceis de responder — "O que significa ser um refugiado?", "Ainda falta muito?". O menino também é cheio de vida e curiosidade, tanto que em determinada parte do livro, assume a narrativa. Mas nesse contexto, temos o único ponto negativo do livro, o homem, que só aparece para brigar com a esposa ou para passar muito e muito tempo divagando sobre o seu projeto com os Apaches.
Também é impossível falar de Arquivo das Crianças Perdidas sem falar da carga emocional que carrega. O contexto político já é bastante difícil, pois sabemos os perigos que os imigrantes passam em busca dessa nova chance. Porém, ao mostrar o lado das crianças que, muitas vezes tentam atravessar a fronteira sozinhas ou são abandonadas no meio do caminho, a autora consegue captar uma emoção muito, muito mais forte. Além disso, as próprias reflexões dos personagens se fixam em nossa memória, bem como a certeza do que vai acontecer com a mulher, as crianças e o homem no exato momento em que entram naquele carro. 

Certamente que Arquivo das Crianças Perdidas foi diferente de tudo o que eu já li. Fico extremamente contente de ter insistido tanto, pois no fundo eu tinha certeza de que não ia me decepcionar. É um livro sobre um tema que mexe, cutuca, incomoda, machuca, mas também é um livro sobre memórias e família, o único conceito que sabemos antes mesmo de alguém nos ensinar.
Título Original: Lost Children Archives ✦ Autora: Valeria Luiselli
Tradução: Renato Marques ✦ Páginas: 408 ✦ Editora: Alfaguara
Livro recebido em parceria com a editora
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28 de setembro de 2019

Cidade das Garotas | Elizabeth Gilbert


Quando iniciei a leitura de Cidade das Garotas, dei belas risadas com algumas das primeiras frases de Vivian. Senti uma vibe de Os Sete Maridos de Evelyn Hugo e pensei que as chances de eu não gostar desse livro eram baixas. E ainda bem que eu estava certa.

27 de fevereiro de 2017

Ainda Estou Aqui | Marcelo Rubens Paiva


Não sou grande fã de ler biografias. Talvez seja ignorância minha, mas eu me entedio fácil e é difícil livros desse gênero conseguirem me prender. Por outro lado, sempre quis ler algo de Marcelo Rubens Paiva, em especial seu tão conhecido Feliz ano velho, mas, até agora, não tive oportunidade. Por isso escolhi Ainda Estou Aqui para resenha e, apesar do receio inicial que as tão temidas biografias trazem à minha vida, mergulhei inteiramente na leitura e o livro se tornou, desde já, inesquecível.

3 de junho de 2016

A Caderneta Vermelha | Antoine Laurain

Título Original: La Femme au carnet rouge
Autor: Antoine Laurain
Páginas: 135
Tradução: Joana Angélica d'Avila Melo
Editora: Alfaguara
Livro recebido em parceria com a editora
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Conheço muito pouco sobre a literatura francesa, mas, no último ano, as obras dessa nacionalidade têm chegado até mim com maior frequência. Também tenho assistido a alguns filmes oriundos daquele país e, por alguma incrível coincidência - ou pela utilização indiscriminada e recorrente dos mesmos critérios pelos autores - quase todas as histórias que conheci até hoje têm uma construção semelhante: um objeto perdido, alguém encarregado de encontrar seu dono, pouquíssimas pistas e uma busca quase irracional que, é claro, tem tudo para resultar em um romance. Foi o que aconteceu, por exemplo, em O leitor do trem das 6h27 e, agora, em A Caderneta Vermelha, de Antoine Laurain.