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31 de julho de 2025

Dias Perfeitos e os enredos super saturados de Raphael Montes

Recentemente, a editora Companhia das Letras publicou uma "edição de colecionador" de Dias Perfeitos, segundo romance do Raphael Montes e um dos maiores responsáveis pelo sucesso estrondoso do autor, dentro e fora do Brasil. Já li alguns livros do Raphael e aproveitei o relançamento para ler este que eu ainda não tinha lido.

Apesar de não ser uma super fã, eu leio os livros do Raphael Montes, porque geralmente são leituras rápidas e envolventes que despertam curiosidade e surpreendem com os plot twists e as passagens perturbadoras.

A sinopse de Dias Perfeitos não é inovadora. Na verdade, ela já foi bastante explorada em muitas outras histórias. A principal delas: o livro O Colecionador, de John Fowles, publicado em 1963. Confesso que as semelhanças me deixaram até intrigada e me levaram a fazer uma pesquisa rápida na Internet. De fato, encontrei diversas outras pessoas apontando para as semelhanças entre o clássico do suspense de 1963 (que ganhou até uma adaptação em 1965) e o livro do brasileiro.

Polêmicas à parte, vamos à resenha: Dias Perfeitos retrata um jovem estudante de medicina, excêntrico e deficiente em habilidades sociais, que conhece uma jovem vivaz, alegre e descolada, e acaba desenvolvendo uma paixão obsessão por ela. Movido pelo desejo de tê-la só para si, Téo sequestra Clarice com o objetivo de fazê-la se apaixonar por ele. Daí em diante acompanhados os tais "dias perfeitos" que se sucedem. 

O estilo Raphael Montes está presente ao longo de todo o texto: muitas atrocidades são cometidas e muitas minorias são atacadas. As falas capacitistas do Téo são frequentes e, em certo ponto, me fizeram revirar o olho e dizer mentalmente: "Ta bom, Raphael, a gente já entendeu que todos os seus personagens são detestáveis e preconceituosos e esse é o seu jeito de chocar o leitor".

Não sei se o autor continua repetindo essa fórmula em seus lançamentos mais recentes, mas vi isso acontecer em O Vilarejo, em Suicidas e em Jantar Secreto e comecei a achar um pouco cansativo.

Como eu já esperava: foi uma leitura bem rápida. Li praticamente inteiro num único dia, principalmente porque eu estava curiosa pra saber o final (e se seria diferente do final de O Colecionador, já que, até certo ponto, estava tudo igual). Tem uma reviravolta perto do fim que eu amei e me fez pensar: "Uau, se o final for por esse caminho eu vou amar". Mas, infelizmente, não foi o que aconteceu. Resumindo: eu não gostei do desfecho.

Aí veio a surpresa: essa edição traz um final alternativo. Minhas esperanças se renovaram e eu fui ler esperando que esse final fosse o final que eu queria. Não era! kkkkk' O final alternativo é bastante bizarro, mas interessante e coerente com o restante do livro (mas ainda prefiro o final que eu tinha em mente kkkk').

Uma curiosidade legal é que há uma sutil referência à Suicidas, primeiro romance de Montes, no final do livro. Saquei na hora e achei divertido encontrar esse easter egg.

Não foi uma leitura ruim, mas, após ler quatro livros do Raphael Montes, me encontro um pouco saturada. Sinto que a intenção de "chocar a qualquer custo" foi se desgastando e não é mais o suficiente (nunca foi?) para garantir uma boa história. Penso em algumas problemáticas de seus livros, mas nem sei se vale a pena mencionar porque deve fazer parte da fórmula, mas...

Por exemplo: as mulheres de suas histórias são sempre subjugadas, diminuídas, nunca saem por cima em nada e, frequentemente, são estupradas. Mais uma estratégia para chocar ou apenas uma falha na forma como Raphael cria e desenvolve suas personagens femininas? Porque, a impressão que fica é a de que todas as mulheres das suas histórias só estão ali para serem objetos de desejo de seus personagens masculinos (isso acontece em Dias Perfeitos, em Jantar Secreto, em Suicidas e em O Vilarejo).

No geral, eu gosto de histórias bizarras e perturbadoras. Mas acho que elas precisam ser mais do que apenas bizarras e perturbadoras e que não vale tudo pra torná-las bizarras e perturbadoras. Stephen King sabe bem disso depois de tentar chocar com o final de It e ser fortemente criticado.

Não me vejo lendo mais nenhum livro do Raphel Montes no futuro, a menos que alguém me garanta que a fórmula evoluiu. Porque se eu quiser ver mulheres sendo estupradas, pessoas sofrendo gordofobia, homofobia e capacitismo e homens brancos vencendo eu ligo a TV e assisto ao jornal.

Pra ser justa, não quero finalizar essa resenha sem elogiar essa nova edição, que está realmente impecável. Todos os detalhes foram bem pensados. A ilustração da capa, com uma mala de viagem rosa, e a pintura trilateral também rosa fazem alusão à mala de Clarice e dão um toque especial para a edição, que também conta com alguns conteúdos extras que enriquecem a leitura. Pra quem é fã vale muito a pena.

Título Original: Dias Perfeitos ✦ Autor: Raphael Montes
Páginas: 320 ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

5 de dezembro de 2024

Intermezzo, de Sally Rooney, e tudo que acontece no interlúdio da vida


Intermezzo significa intervalo, interlúdio ou entreato. É uma palavra italiana muito utilizada no teatro e representa o intervalo entre dois atos. O termo também é utilizado no xadrez e pode indicar um movimento inesperado feito entre duas jogadas esperadas. Com base nisso, é possível fazer alguns inferências sobre o novo livro da Sally Rooney: não é um livro sobre grandes acontecimentos, mas um livro sobre o que acontece no meio, entre os atos principais. E isso fica claro quando descobrimos que o livro se inicia logo após a morte do pai dos protagonistas.

Peter e Ivan são irmãos, mas não se dão bem. Peter é um advogado de 32 anos, bem-sucedido, popular e que se encontra numa situação incomum: tem uma ex-mulher com quem mantém uma amizade próxima e uma ficante que é muito mais jovem do que ele. Ivan, por outro lado, é um jovem de 22 anos, prodígio no xadrez, introvertido e, nas palavras de seu irmão mais velho, "meio autista". Em um dos campeonatos de xadrez que participa, Ivan conhece Margaret, uma mulher bem mais velha com quem ele acaba se envolvendo.

O livro é narrado em terceira pessoa, alternando perspectivas diferentes. E, mais uma vez, assim como acontece em Pessoas Normais, Sally Rooney impressiona por seu estilo narrativo. Muitos acham o estilo de escrita de Rooney soberbo e pedante. Eu compreendo, mas discordo. É tão natural a forma como ela narra que eu não consigo acreditar que seja intencionalmente forçado. Sua narrativa me lembra Proust, com seus parágrafos enormes (alguns com mais de 7 páginas) e descritivos, e Virgínia Woolf, com seu fluxo de consciência que radicaliza o monólogo interior.

Sally narra tudo de uma vez, tudo junto, descrições de cena, pensamentos, sentimentos e diálogos. Seus diálogos, principalmente, geram opiniões divergentes. Sem parágrafo, travessão, sem aspas, nada que indique que aquilo seja uma fala de um personagem. E mesmo assim, tão fácil de compreender. Tão intuitivo. Foi o mesmo que eu senti em Pessoas Normais, que ela não precisava sinalizar os diálogos, pois eles se sinalizavam por conta própria.

Dizer que o livro é narrado em terceira pessoa pode causar uma impressão errada. Normalmente, livros narrados em terceira pessoa são mais impessoais e objetivos. Em Intermezzo, essa narrativa em terceira pessoa se mescla aos pensamentos dos personagens, fazendo com que a narrativa, em alguns momentos, seja em primeira pessoa.

Isso acontece principalmente nos capítulos do Peter. A narrativa traduz com maestria o estado emocional do personagem, confuso, perdido e caótico. Mais do que isso, a narrativa parece incorporar diferentes vozes presentes na mente de Peter, com pensamentos que se contradizem e ideias que são em seguida confrontadas. Os capítulos do Ivan são um pouco mais objetivos, ainda que também carreguem carga emocional.


A história se desenrola assim: Ivan e Peter, vivendo suas vidas, tendo poucas interações diretas, mas pensando e falando um do outro com frequência. De certa forma, a autora se utilizou de um recurso que ela já havia usado em Pessoas Normais: a falta de diálogo como base dos conflitos interpessoais. No entanto, eu achei que em Intermezzo isso ficou ainda mais realista, porque além de faltar diálogo, quando ele ocorre ele é atravessado, atropelado e acidentado. Há tanta mágoa, rancor, raiva, vergonha, arrependimento e ainda o luto pela perda do pai que, mesmo quando Peter e Ivan conversam, o que sai de suas bocas é improdutivo e conflituoso. Também é curioso que os irmãos interajam tão pouco ao longo do livro e que, mesmo assim, estejam tão presentes na vida um do outro.

Cada um tem uma opinião sobre o que acha que o outro pensa e a gente, que conhece os dois lados, fica numa ânsia de fazê-los entender que "SEU IRMÃO NÃO PENSA ISSO DE VOCÊ", ansiando pelo momento em que eles irão cair na real. Isso se der tempo de eles caírem na real. O livro todo carrega uma tensão sobre o que vai acontecer. Isso se dá principalmente porque Peter tem muitos pensamentos suicidas, desde o início do livro e a constante ameaça de um suicídio faz o leitor se perguntar quanto tempo ainda existe para que os irmãos se acertem.


Eu sou o tipo de leitora que adora odiar personagens, enquanto a Sally Rooney é o tipo de autora que adora criar personagens detestáveis. Então a gente combina bem. Todos os personagens aqui são fáceis de odiar, ao mesmo tempo que é fácil se identificar com eles. É fácil se identificar com a soberba do Peter e com o egoísmo do Ivan. As mulheres dessa história, por outro lado, são incríveis, mesmo que também tenham defeitos. Sylvia, ex-mulher de Peter, é doce e inteligente. Naomi, sua namorada, é vivaz e selvagem. Mas a minha favorita foi a Margaret, centrada e compreensiva. Nas palavras de Ivan: "ela entende tudo".

Particularmente, eu gostei mais do Ivan. Sua personalidade introspectiva e inocente me conquistou. No entanto, os capítulos do Peter foram os meus preferidos, pois tinham uma carga psicológica maior. Eu confesso que comprei um lado nessa história desde o começo, mas Sally foi capaz de me surpreender ao me provar que, na maioria das vezes, não existe certo ou errado quando estamos falando de relações humanas. Ambos, Peter e Ivan, erraram. Alguns erros foram piores que outros, mas não deixam de ser erros. Eu me emocionei em muitos momentos do livro. As reflexões sobre o sentido da vida (ou a ausência dele) foram muito tocantes pra mim. O final também foi muito comovente e até me arrancou uma lágrima discreta. 

Mas não pensem que o livro é só reflexão e filosofia, pois tem muito mais do que isso, tem romance, inclusive com cenas hot, tem brigas, inclusive com pancadaria, tem muita discussão, ofensa, "vai se f...." e tudo mais. Eu amei amei amei, de verdade. Vou sentir falta dos personagens, que pareceram tão reais. Ao final do livro, a autora incluiu uma lista de citações e referências que ela utilizou em seu texto. Fica evidente que Sally tem uma bagagem grande de leituras e conhecimento. Terminei essa leitura com vontade de ler outro livro da Sally, já que, antes desse, eu só havia lido Pessoas Normais. Estou realmente apaixonada pela escrita da autora.

Por fim, gostaria de enaltecer o trabalho da equipe editorial da Companhia das Letras, especialmente da tradutora, Débora Landsberg. Eu imagino que traduzir um texto com tanto fluxo de consciência não deva ser uma tarefa fácil.

Título Original: Intermezzo ✦ Autora: Sally Rooney
Páginas: 456 ✦ Tradução: Débora Landsberg ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

19 de abril de 2024

Uma Rua no Brooklyn, de Jenny Jackson: um romance com teor de crônica para os amantes de Nova York

Confesso, não fui uma daquelas jovens obcecadas pela Disney ou cultura estadunidense. Consumia as músicas, séries e filmes, mas sem nenhum deslumbramento. Tudo mudou há 2 anos quando comecei a assistir Sex And The City: se você não é fascinado por Nova York, Sarah Jessica Parker vai te fazer mudar de ideia. Com as noites de gala, vida boêmia e círculos sociais bem definidos onde todos se conhecem, a Big Apple é uma cidade cheia de encantos como já nos avisava Alicia Keys em Empire State of Mind - "In New York / Concrete jungle where dreams are made of / There's nothin' you can't do".

Quando vi o lançamento da Companhia das Letras com ambientação no submundo dos milionários da Brooklyn Heights, comecei a leitura e terminei em 2 dias. É um romance leve, mas com reflexões sobre família, dinheiro, elite e aparências. Comecei o livro me perguntando o quão maravilhoso deveria ser uma vida com tantos luxos e regalias, mas terminei com a clássica pergunta perene: "dinheiro realmente traz felicidade?". 

Havia um sem-fim de coisas que poderia dar errado, e dinheiro era a melhor maneira de se proteger de uma tragédia.

Uma Rua no Brooklyn é escrito sobre o ponto de vista de 3 mulheres. As duas irmãs e clássicas nova-iorquinas frequentadoras dos melhores clubes, são as irmãs Georgiana e Darley. A primeira, uma jovem que trabalha numa organização que visa levar saúde para países menos favorecidos, vivendo sua solteirice e avançando em uma paixonite do escritório. Mimada como a irmã, Darley abriu mão de sua herança milionária no acordo pré-nupcial para casar com Malcolm, descendente de coreanos e um mago do mercado financeiro da aviação. 

A última mulher é a que tira a narrativa do seu eixo Real Housewives. Sasha foi criada numa família de classe média e teve a sorte de conhecer seu grande amor no começo da vida adulta após anos de idas e vindas com o namorado do ensino médio. Cord é o marido de Sasha, irmão de Georgiana e Darley, que resistem em aceitar o casamento e chamam a cunhada de "a interesseira". Após o casamento, o casal mudou-se para o grande sobrado de 4 andares da família na Pineapple Street, mas a recém-chegada à família não pode sequer mudar as cortinas ou jogar recordações de família no lixo. É um lembrete silencioso de que a família Stockton é um clã e ela não é de todo bem-vinda. 

Estavam sempre desesperados em manter as aparências e se certificar de que não houvesse nenhuma rachadura em sua fachada.

Com essa dinâmica instalada, o livro se desenrola em meio a fofocas, dramas e conflitos dos 1% mais ricos do mundo. Os encontros em clubes de tênis da alta sociedade e as festas à fantasia, revelam um pouco sobre como o dinheiro pode ser um grande criador de problemas, na mesma medida que pode solucioná-los. 

Aos desavisados: não é um romance água com açúcar. Em alguns momentos, vai te deixar com a garganta seca sem saber o que acontecerá e se os personagens ficarão bem. É totalmente humano, são problemas tão cotidianos que provam que os super-ricos também são humanos sujeitos às suas emoções e às consequências destas. 

Fiquei muito feliz em poder ler sobre temas que gosto como dilemas familiares e vida em Nova York com uma narrativa tão adulta, sagaz e questionadora. Um romance leve, mas com o peso de uma vida cotidiana o que traz um teor de crônica do The New York Times de domingo. Aos amantes de NY, uma leitura inesquecível. Aos que ainda não se deslumbram com a energia cosmopolita da cidade, uma oportunidade de deleitar-se. 

Título Original: Pineapple Street ✦ Autora: Jenny Jackson
Páginas: 256 ✦ Tradução: Lígia Azevedo ✦ Editora: Companhia das Letras
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7 de novembro de 2023

O Deserto e Sua Semente, de Jorge Baron Biza: um triste relato sobre as tragédias causadas pelo machismo


Autoficção é um gênero literário que combina a autobiografia com elementos ficcionais. Sempre que vejo um livro de autoficção, já me preparo psicologicamente. Afinal, penso que para um autor escolher autoficção ao invés de simplesmente autobiografia, deve ser porque o que ele tem a dizer não é fácil de ser dito e, por isso, precisa de elementos ficcionais que o distanciem da história. Não sei faz sentido pra vocês, mas pra mim faz.

Portanto, quando eu tomei conhecimento da obra de Jorge Baron Biza, jornalista argentino nascido em 1942, fiquei curiosa e apreensiva sobre o que encontraria em seu único romance. Biza, na época, se autopublicou após ser sucessivamente rejeitado por diferentes editoras. O autor não queria que sua obra fosse lida como autobiográfica, pois, segundo ele, "o sofrimento não legitima a literatura". Bom, pode até não legitimar, mas que trás uma carga diferente, isso é inegável. E, no fim dessa resenha, vocês vão entender que há conexões entre a obra e acontecimentos posteriores a sua publicação que são difíceis de ser ignorados.

O Deserto e Sua Semente começa com uma mulher, Eligia, sendo atacada pelo ex-marido quando eles estão prestes a oficializar o divórcio. Arón, num ataque desprezível e misógino, joga ácido na mulher, desfigurando seu rosto e queimando sua pele. A partir desse episódio assustador e revoltante, vemos seu filho e narrador da história, Mario, vagando de hospital em hospital enquanto acompanha a mãe em sua reconstrução.

Mario é um narrador ligeiramente apático e alheio às situações, tornando difícil ao leitor saber o que ele sente com relação a tudo que está acontecendo. Nas poucas vezes em que Mario fala sobre seu pai (o agressor), ele relata que o homem era violento e que sentia medo dele. Toda a narrativa é feita de modo distante, o que não me agradou muito, pois prefiro narrativas mais focadas em sentimentos e subjetividade. Ao mesmo tempo, essa "indiferença" dá ao romance um tom de estranhamento. É difícil explicar, mas posso dizer que passei boa parte do livro me sentindo estranhamente distante da história por não conseguir me apegar aos personagens. Enfim, acho que o que estou tentando dizer é que faltou profundidade, faltou contexto e emoção. Achei a narrativa muito engessada, fria e distante. E os momentos em que o narrador, Mario, se desvia do assunto principal para falar de coisas totalmente desinteressantes e irrelevantes, como suas aventuras sexuais, me afastavam cada vez mais da história.

Por outro lado, esse livro foi um choque de realidade em vários momentos, como, por exemplo, quando eu descobri que o ácido continua agindo dias depois de entrar em contato com a pele. Isso significa que, diferente de uma queimadura com fogo, no caso de queimadura por ácido, o paciente precisa aguardar mais tempo para receber o enxerto, pois, se não aguardar o tempo necessário, o ácido pode queimar a pele nova que é colocada por cima. Me dói pensar nessa informação, principalmente sabendo que esse tipo de ataque contra mulheres não é incomum. Basta uma pesquisa rápida no Google para encontrar diversas notícias de mulheres atacadas com ácido. Me pego pensando no que está por trás de um ataque desses. Não apenas o desejo de ferir ou mesmo de matar, mas o desejo de desfigurar, de tirar a identidade de uma mulher, de atacar sua imagem, sua autoestima.

Após atacar a mulher, Arón comete suicídio. Os detalhes sobre o relacionamento deles são escassos, mas percebemos que era uma relação abusiva desde o princípio. Anos depois, Eligia também se suicida, no mesmo apartamento onde o ex-marido se matou. Mais tarde, foi a vez da irmã mais nova de Jorge cometer suicídio. Jorge escreveu que as pessoas corriam para fechar as janelas toda vez que ele entrava num apartamento alto, pois previam que uma vida marcada pela violência não sairia ilesa. Infelizmente, estavam certos, mas não puderam evitar: Três anos após a publicação do livro, Jorge comete suicídio. Uma sequência lamentável de acontecimentos violentos e trágicos marcam essa família. Jorge tinha apenas 22 anos quando precisou acompanhar sua mãe desfigurada em busca de reconstruir sua identidade. Que sequelas uma coisa dessas pode deixar em alguém?

Apesar de não ter gostado tanto do livro, por achar que o texto poderia ter focado mais em outros aspectos, eu gostei de ter feito essa leitura e de ter pesquisado mais sobre a vida do autor e de sua família. Um triste exemplo de como o machismo destrói vidas e mata famílias inteiras. Apesar de esse não ser o viés do autor, foi o meu, e tudo bem, porque a arte está sempre aberta a interpretações.

Título Original: El Desierto y su Semilla ✦ Autor: Jorge Baron Biza
Páginas: 232 ✦ Tradução: Sérgio Molina ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora
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30 de julho de 2023

Ninguém Quis Ver o poder da poesia feminina


"O fenômeno da poesia jovem escrita por mulheres talvez tenha sido a maior conquista da literatura hoje." É assim que Heloisa Buarque de Hollanda abre a apresentação que faz para o livro Ninguém Quis Ver, de Bruna Mitrano, e eu não poderia concordar mais. Amo poesia escrita por mulheres, de Sylvia Plath a Rupi Kaur. E as nacionais têm um espacinho especial no meu coração, pois tem tanto da nossa realidade ali retratada, poética e cruamente.

Inclusive, essa junção de beleza e feiura na poesia me encanta. Bruna Mitrano, nesse aspecto, me lembrou Aline Bei, escolhendo e selecionando palavras bonitas para retratar verdades feias. Verdades essas que a poesia escrita por homens raramente aborda (ou se importa em abordar). Porque, assim como afirma Heloisa, a poesia das mulheres dá voz às mulheres e a tudo que nós silenciamos. É a expressão pela arte.

E quanta expressão. Lendo Ninguém Quis Ver eu me senti fazendo algo errado e sujo, como se eu estivesse lendo os diários da Bruna, lendo tudo aquilo que ela não ousaria contar para ninguém, mas que, na verdade, ela ousou sim. Ousou falar da pobreza que vivenciou, dos abusos que sofreu e de todas as dores que viveu e que viu as mulheres de sua família viverem.

Bruna fala sobre sua vida, que não é muito diferente da vida de muitas outras mulheres pobres e periféricas, que dedicam seu tempo deixando limpas e impecáveis as casas de outras pessoas, que não dormem um sono profundo e tranquilo quando há um homem ao lado na cama e que não suportam mais ter que dar conta de tudo.


O primeiro poema dessa coletânea já me arrebatou, com Bruna falando sobre seu amor pelo mar e sobre não morar (tão) perto dele. No caso de Bruna, são setenta quilômetros de distância. No meu caso, são setecentos. E, sim, eu concordo com você, Bruna: só esquece do mar quem mora perto do mar.

A forma como a Bruna explora os aspectos mais sutis da pobreza é tocante: do cabelo ressecado ao calçado apertado e a sopa rala. Sua infância marcada pela preocupação em economizar e não desperdiçar. Terminei o livro com vontade de colocar a Bruna num potinho e protegê-la.


O tema da pobreza permeio o livro todo, mas os poemas vão além disso. O poema denominado 1989, por exemplo, fala sobre os abusos que a autora sofreu. Esse poema me dilacerou. Outro, denominado Nome Próprio, me revoltou, pois retrata o modo como as mulheres são sempre vistas como propriedades de alguém (na maioria das vezes, de um homem).


E quando Bruna disse: "Você é uma criança, não tem que aguentar nada disso", eu só quis deitar em posição fetal e chorar um pouquinho. Amei fazer essa leitura e me lembrarei desses poemas por muito tempo. Você é uma poetisa e tanto, Bruna.

Título Original: Ninguém Quis Ver ✦ Autora: Bruna Mitrano
Páginas: 94 ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

18 de julho de 2023

O Avesso da Pele, premiado romance de Jeferson Tenório, mostra como é ser negro em um país racista


O Avesso da Pele é um romance nacional escrito por Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti 2021. Ambientado no Sul do Brasil, evidencia as nuances de ser negro em um país de maioria preta e parda, mas contraditoriamente racista.

O livro é dividido em quatro partes, sagazmente nomeadas e com cadência de leitura que engaja. Capítulos curtos sem perder o poder de contar a história de vários personagens em paralelo. Escrito em primeira pessoa para uma segunda, é uma espécie de carta aberta de filho para pai

Esta história é ainda a história de uma ferida aberta.

Pedro é o filho. Um jovem universitário, futuro arquiteto, tímido e claramente ainda buscando um lugar no mundo. Um lugar como homem preto em Porto Alegre. Henrique é o pai. Professor secundarista desacreditado no poder da educação, carrega um amor pela literatura que permeia passagens do romance. 

A história comum contada no livro ganha sua autenticidade ao costurar em uma linearidade que prende. A temporalidade das histórias de pai e filho, além da mãe e outros personagens relacionados, às vezes é alternada entre capítulos. Um vai e vem na linha do tempo dessas vidas entrelaçadas.

À medida que as histórias são contadas, sobressaem-se as nuances da negritude. Questões como colorismo, condições sociais, aparência e gêneros são decisivas para determinar a vivência de uma pessoa negra no Brasil. Pedro observa esses detalhes nos personagens e traz suas observações na narrativa, de uma maneira muito natural, uma relação com os temas que apenas outra pessoa preta poderia ter. 

Além dos temas relevantes à negritude, as estratégias de sobrevivência de cada uma dessas personagens, certamente foram pontos de identificação para mim. Ser constantemente abordado pela polícia, nunca ser notado nas festas, ver as pessoas recolhendo pertences com sua chegada. Como negra, não passei por todas as situações abordadas, mas também foi importante ter a consciência dos outros recortes de negritude, através de um romance, com seu viés literário porém muito conectado da realidade. 

Outro recorte que particulariza O Avesso da Pele é a ambientação. A história acontece no Sul do país, onde a maior parte da população é branca e ser negro pode ser desafiador. E com esse delineamento, fica mais claro que ser negro pode ser muito diferente dependendo do espaço que ocupamos

Ao caminhar por Porto Alegre, você se sentia sem lugar. Porque, toda vez que você saía para caminhar, tinha a impressão de estar invadindo um espaço. Bastava dar uma olhada para perceber que você não podia pertencer àquilo, mas acontece que você insistiu. Permaneceu. Porto Alegre era um lugar que você construiu fora de si. Você nunca esteve dentro dela.

Outro aspecto que me identifiquei no livro foi o papel do educador, o quão exaustivo e transformador é ser professor do ensino público. As passagens do livro que Henrique democratiza o entendimento de Crime e Castigo e como o impacto em apenas um aluno já é satisfatório, revelam a importância desse papel. 

Com todas as questões sociais trabalhadas, ainda sobra espaço para brever análises psicológicas e de sentimentos. É um romance completo, um retrato muito fiel de como é ser negro no Sul do Brasil, como é lidar com o ódio gratuito de racistas e ainda assim, seguir em frente com a força de filhos de Ogum como Henrique.

Lembro o dia em que você me disse que sua cabeça era de Ogum, e que isso era ter sorte, porque Ogum era o único orixá que sabia lidar com abismos.

Título Original: O Avesso da Pele
Autor: Jeferson Tenório ✦ Páginas: 192 ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

22 de abril de 2023

Vamos falar sobre Ao Paraíso, a polêmica Hanya Yanagihara e escolhas difíceis


Depois de nos levar ao inferno com Uma Vida Pequena, a polêmica Hanya Yanagihara ressurge, 7 anos depois, com seu novo calhamaço, Ao Paraíso. O novo romance de Hanya tem público garantido, já que seu livro anterior, apesar de muito controverso, conquistou uma legião de fãs (inclusive eu). Porém, não dá para ignorar as diversas falas polêmicas e posicionamentos no mínimo problemáticos da autora. Então, nesse post, falarei um pouco sobre o que eu achei do novo livro de Hanya, sobre algumas das polêmicas envolvendo a autora e sobre a difícil arte de fazer escolhas.

Uma Vida Pequena é um dos meus livros preferidos da vida. Chorei de soluçar durante a leitura e ainda me pego pensando naquela história e nos seus personagens. É sim um livro muito pesado, com cenas tristes, perturbadoras, grotescas e chocantes. Obviamente, não é um livro para todos. Eu, como psicóloga, posso afirmar que não tem nada de inverossímil nessa história. Digo isso pois vejo muitas pessoas falando que não é possível tanta coisa de ruim acontecer com uma única pessoa e que a autora certamente estaria exagerando. Mas afirmo com certeza que ela não exagerou. Não é comum (felizmente), mas existem os Judes da vida real (infelizmente).

Eu não sou uma leitora muito sensível. Então, pra mim, a leitura de Uma Vida Pequena foi forte, marcante, dolorosa, mas não traumatizante (como eu sei que foi para algumas pessoas). Na verdade, meu único problema com o livro é a forma como Hanya escolheu mostrar uma falta de eficácia do processo de terapia psicológica. A autora até já declarou que não acredita em psicoterapia. E minha opinião sobre isso é apenas uma: NEGACIONISTA! Porque terapia não é religião, você não pode escolher acreditar ou não. Psicoterapia é CIÊNCIA.

Essa é apenas uma dentre as muitas polêmicas envolvendo Hanya Yanagihara. Vou abordar mais algumas ao longo desse texto. A questão é que escolher ler outro livro seu foi uma escolha difícil pra mim. Hanya é uma pessoa fechada, com opiniões fechadas e que não tem se mostrado disponível para dialogar e aprender. Inclusive, ela também já declarou que não lê críticas e resenhas de seus livros. Tudo isso fez com que eu fosse para essa leitura com uma mão no livro e a outra na consciência.

Eu amo livros que me fazem ter emoções intensas. Amo sentir coisas lendo. Minhas memórias com livros são sempre atreladas a sentimentos. Crime e Castigo: ansiedade. Lolita: raiva. Uma Vida Pequena: tristeza. Então, essa era minha maior expectativa com essa leitura: eu queria sentir algo.

Ao Paraíso tem uma sinopse promissora e bem diferenciada. Três histórias, três épocas diferentes. 1893, 1993 e 2093. Um século separa uma história da outra, mas elas têm muito em comum. Uma Nova York do século XIX alternativa onde casamentos entre pessoas do mesmo sexo são normais, uma Manhattan assolada pela AIDS e um mundo devastado por pandemias e governado com autoritarismo.

O romance é dividido em livros. O livro I é digno de uma romance de época, com charretes, lamparinas e casamentos arranjados. Porém, nessa realidade imaginada por Hanya, casamentos podem ser arranjados também entre dois homens ou duas mulheres. Seria perfeito, certo? Bom, quase. Mas e se você fosse um herdeiro e se apaixonasse por um músico pobretão? E se existissem motivos para você acreditar que seria melhor não confiar nessa pessoa? Você trocaria segurança por liberdade? Estabilidade por aventura? O certo (que não te faz feliz) pelo duvidoso (que pode te fazer feliz, mas também pode te deixar ainda pior)?

No livro II, Hanya inverte um pouco as coisas. E se você se relacionasse com alguém muito mais velho que você e muito mais rico? Sua família aceitaria bem? Esse relacionamento não faria você se sentir inferior? E como fica a dinâmica de poder em um relacionamento assim? Ah, e também tem o fato de que, diferente de você, ele é branco. E tudo isso em meio a uma epidemia de AIDS. Essa parte do livro me lembrou muito de Mrs. Dalloway, da maravilhosa Virgínia Woolf. Um longo capítulo que relata a passagem de um único dia e uma festa para alguém que está morrendo. O final da parte 1 do livro II me emocionou bastante.

O livro II é dividido em duas partes e a segunda é bastante tocante. Resumidamente (e evitando spoilers), é como se fosse uma carta de um pai para seu filho. Vou deixar um trechinho aqui que eu achei bem forte:

Eu tinha desperdiçado minha vida, mas você não ia me deixar desperdiçar a sua. Por isso fiquei orgulhoso de você por ter me deixado para trás, por fazer o que eu não tinha sido capaz.

É também no livro II que Hanya explora assuntos relacionados à anexação do Havaí aos Estados Unidos. A autora, que cresceu no Havaí, retrata o processo pelo qual o território deixou de ser uma monarquia e passou a ser apenas um estado do país norte-americano. Pesquisando sobre o assunto, pude perceber que a autora tomou algumas liberdades criativas, mas, no geral, a história criada por Hanya guarda muitas semelhanças com a história real. Foi interessante ler sobre esse processo e sobre como isso afetou as pessoas de formas diferentes.

Por fim, o livro III ocupa toda a segunda metade de Ao Paraíso. Eu estava curiosa por essa parte da história, mas confesso que cheguei aos 50% do livro já bastante cansada (que livro grande 😓) e, para piorar, achei esse terceiro livro bem prolixo e com muitos parágrafos desinteressantes, apesar do contexto ser muito interessante: um mundo em colapso político, econômico, humanitário e de saúde. Pra nós, que acabamos de vivenciar uma pandemia, essa parte da história é bastante familiar.

Ultimamente, me pego pensando cada vez mais que, dentre todos os horrores que as doenças infligiram, um dos que menos se discute é a forma violenta como elas nos dividiram em categorias. A primeira e mais óbvia divisão é a dos vivos e o dos mortos. Depois vêm a dos doentes e dos saudáveis, dos enlutados e dos aliviados, dos curados e dos incuráveis, dos que têm seguro de saúde e dos que não têm. A gente monitorava essas estatísticas; a gente tomava nota.

Assim como vimos em Uma Vida Pequena, Hanya escolheu majoritariamente protagonistas homens para sua nova história. O que, na minha opinião, é no mínimo curioso. Por que uma mulher escolhe contar histórias pela perspectiva de homens? E a resposta para essa pergunta pode estar em uma entrevista dada pela autora. Ao ser questionada com "E se Uma Vida Pequena tivesse protagonistas mulheres?", Hanya respondeu que o livro seria chato. Por que? Não sei.

Hanya Yanagihara também não acredita em "avisos de gatilho", pois ela não acha certo deixar de ler um livro por conta de um gatilho específico. Eu nesse momento sou aquele meme "Eu respeito seu posicionamento, mas eu acho que é um posicionamento burro". Porque eu até entendo o ponto que ela está tentando defender, mas a gente nunca sabe a dor que um gatilho pode causar em alguém. E seria muito fácil pra mim, por exemplo, que não tenho nenhuma sensibilidade maior com determinado tema falar "ah mas você vai deixar de ler um livro todo só porque tem uma cena com tal gatilho?". Talvez, se Hanya acreditasse em terapia, ela saberia que a exposição à conteúdos sensíveis só deve ser feita de forma controlada e cuidadosa e, de preferência, com acompanhamento profissional. Quando essa exposição é feita da forma errada, ela pode agravar a ansiedade e intensificar o trauma. Mas Hanya não lê críticas ao seu trabalho, então ela nunca vai saber disso. 🤷‍♀️

Ok, voltando ao livro (desculpa, me perdi na conversa). Eu continuo preferindo Uma Vida Pequena, principalmente porque Ao Paraíso não conseguiu me envolver tanto e os personagens não me cativaram tanto. Mas acho que terão muitas e muitas pessoas que vão preferir Ao Paraíso, pois o novo livro da autora está longe de ser tão pesado quanto o anterior. É melancólico, mas não chega a ser doloroso como seu antecessor.

Uma coisa curiosa sobre a escrita de Hanya é que ela é naturalmente melancólica. Lendo Ao Paraíso, eu me pegava sentindo tristeza sem saber o porquê. A maneira como ela narra é triste. As reflexões que ela faz são tristes. E mesmo quando os personagens estão vivendo momentos bons, há certa tristeza na narrativa.

Ao Paraíso consegue replicar algumas das maiores qualidades de Uma Vida Pequena: principalmente a escrita elegante e fluida de Hanya (que acontece na maior parte do livro, mas não nele todo). O livro é difícil de largar e, quando eu não estava lendo, eu estava pensando na história e querendo voltar logo para ela. Outra característica que Ao Paraíso e Uma Vida Pequena têm em comum são seus personagens realistas. Parece que, a qualquer momento, eu vou estar andando na rua e vou dar de cara com Jude, David ou Charles.

Ao Paraíso fala muito sobre escolhas, sobre nossa busca por felicidade e sobre tudo o que podemos perder nessa busca. Porque toda escolha é uma renúncia e nem sempre há uma escolha certa. Às vezes, a gente sabe exatamente o que vamos perder se tomarmos certa decisão, mas não temos ideia do que vamos ganhar. Incerteza e esperança coexistindo.

Essa leitura também me fez perceber que Hanya gosta de contar histórias pela perspectiva pessoas frágeis, inseguras e desajustadas. Portanto, não é difícil desenvolvermos afeição por seus personagens e até certo desejo de protegê-los. Meu lado psicóloga fica o tempo todo tentando diagnosticar seus personagens. kkkkkk

Confesso que passei o livro todo tentando entender porque Hanya decidiu unir essas três histórias em um único romance. Foi, de certa forma, uma decepção perceber que não existiam maiores conexões entre as diferentes histórias apresentadas no livro. Mesmo assim, a ciclonização evidenciada por Hanya nessas três histórias é tocantemente assustadora.

Mesmo assim, é uma leitura que vale a pena. Narrativa minuciosa e melancólica através de uma escrita majoritariamente fluida e poética. E a forma como todos os livros terminam com as mesmas palavras é realmente linda. A verdade é que estamos todos tentando chegar ao paraíso.

Título Original: To Paradise ✦ Autora: Hanya Yanagihara
Páginas: 720 ✦ Tradução: Ana Guadalupe ✦ Editora: Companhia das Letras

9 de agosto de 2022

Feminismos: Uma História Global | Lucy Delap


❝ Magistral. […] Reconstitui brilhantemente três séculos de ativismo em vários continentes ❞ 
History Today

Lucy Delap é uma historiadora inglesa, especializada em estudos de gênero e feminismo. Além de lecionar na Universidade de Cambridge, realiza pesquisas super reconhecidas no meio acadêmico sobre os temas citados anteriormente. Porém, seu nome se popularizou através do livro Feminismos: Uma História Global, que fala sobre o movimento, suas vertentes, polêmicas e os avanços dessa militância na sociedade.

De acordo com o Politize!, o feminismo é um "movimento que luta pela igualdade social e de direitos para as mulheres e busca combater o modelo social baseado no patriarcado e os abusos e a violência contra as mulheres". Ele existe porque precisamos lutar contra uma sociedade historicamente, culturalmente e socialmente desigual e machista. Existe porque precisamos continuar conquistando nossos direitos até mesmo em coisas corriqueiras, como receber o mesmo salário que um homem que desempenha a mesma função que nós em uma empresa, ou até mesmo poder sair de casa para trabalhar. 

Nesse sentido, muito se fala sobre as "ondas feministas". Mas, em sua narrativa, Delap procura descontruir essas ideias, uma vez que são protagonizadas por um grupo restrito de mulheres. De acordo com a autora, o feminismo é multifacetado, global e não excludente. Não que as divisões dentro do feminismo sejam erradas, mas percorrer o séculos de história do movimento por temas, e não cronologicamente, permite que encontremos pontos em comum entre todas as lutas. 

A estruturação de Feminismos: Uma História Global, parte, portanto, de oito grandes temas, divididos em capítulos: Sonhos, Ideias, Espaços, Objetos, Visuais, Sentimentos, Ações e Canções. É dessa forma que Lucy Delap mostra as formas pelas quais diferentes mulheres lutaram pela igualdade de gênero no mundo, incluindo no Brasil. Para além de narrar a história do movimento, a autora faz algo de extrema importância para a mobilização feminista atual: evidencia vozes de mulheres que foram silenciadas — muitas vezes dentro do próprio movimento — ao longo dos anos. 

Não vou mentir para vocês. Esse não é o tipo de livro que dá para ler de uma vez só, porque é denso demais e essencial demais. Estamos revivendo nossa história, remexendo nosso passado, então é preciso fazer isso com calma e cautela, ainda que seja necessário para que possamos compreender o presente e o futuro. Para ser lido e relido, Feminismos: Uma História Global é um livro fundamental não só para mulheres, mas para qualquer pessoa que tenha vontade de compreender minimamente a importância desse movimento tão plural.

Título Original: Feminisms: A Global History ✦ Autora: Lucy Delap
Páginas: 336 ✦ Tradução: Isa Mara Lando & Laura Teixeira Motta ✦ Editora: Companhia das Letras
Livros recebidos em parceria com a editora

15 de fevereiro de 2022

A Extinção das Abelhas | Natalia Borges Polesso


A Extinção das Abelhas é um livro estranho, que vai te virar do avesso com todas os debates que propões sobre as normatividades sobre poder, relacionamentos, democracia e o fim do mundo. É um romance curto sobre Regina, uma mulher quarentona que foi abandonada pela mãe e tornou-se órfã após o falecimento de seu pai. Apesar disso, a protagonista nunca está sozinha porque sempre tem mulheres incríveis em sua vida: tias, prima ou namoradas. Esse enaltecimento dos relacionamentos femininos acontece porque a autora, Natalia Borges Polesso, é vencedora do prêmio Jabuti e possui diversos romances reconhecidos pela crítica que exploram os relacionamentos homoafetivos femininos e sororidade.

Com seu caráter distópico, o livro acontece imediatamente antes e depois de um colapso mundial, cujo o maior indicador era a extinção das abelhas. O desaparecimento dos animais, seria como o sinal de efeito borboleta da devastação mundial. Nesse contexto, Regina vive sozinha na casa dos pais e vive as adversidades de um mundo pós-pandemia do Covid-19, mas com novos problemas a encarcerar as pessoas em dilemas pessoais e coletivos. Sabe-se que o livro acontece após 2020, mas não consegui ter clareza em a ano os eventos ocorrem e talvez esse tenha sido um recurso literário da autora, que é doutora em teoria da literatura. 

O livro é dividido em três partes. Na primeira, no cenário pré-colapso, a narrativa divide os capítulos entre a vida da mãe desaparecida de Regina, Lupe e nos demais se atém à vida da filha. Ambas enfrentam dilemas e sentem-se fora dos eixos pré-estabelecidos para elas. Lupe foge com um itinerante para ser a Monga estrada à fora, enquanto Regina é diabética e camgirl. Na segunda parte, é apresentado o contexto no mundo colapsado onde ocorrerá a terceira parte, que une os laços e determina os finais de mãe e filha. 

É a partir da segunda parte que as críticas sociais sobre a negligência acerca dos problemas ambientais que vivemos hoje, sobre a força da direita extremista e a LGBTfobia. Definitivamente, não é um livro leve, mas que certamente proporciona um novo ponto de vista sobre essas e outras questões. Como por exemplo, a possibilidade de Lupe escolher ter uma nova vida fora da maternidade e conhecer o mundo todo, sempre permitida aos homens e nunca às mulheres. É um livro bem escrito e pesado, mas necessário. 

Título Original: A Extinção das Abelhas ✦ Autora: Natalia Borges Polesso
Páginas: 312 ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

11 de fevereiro de 2022

Política é para Todos | Gabriela Prioli

Que Gabriela Prioli tornou-se a queridinha da internet no cenário jornalístico de economia e política, não é nenhuma novidade. O inesperado está na maneira leve e fácil com a qual ela explica nosso complexo sistema político ou o declínio notável da democracia vivido nos últimos anos. Essa mesma leveza consagrada nos debates políticos da CNN ganha espaço no primeiro livro da advogada, Política é para Todos. Com poucas páginas e explicações sucintas, Gabriela traz um resumo de história da democracia e autoritarismo no Brasil enquanto explica seus Poderes e Constituição, no estilo de guia rápido também útil para consultas em momentos de dúvida ao ver o noticiário.

Em 9 capítulos curtos, a autora explica toda a política nacional desde a independência até o caótico cenário do Poder Executivo durante a pandemia do Covid-19. É o livro perfeito para quem perdeu algumas aulinhas de história, mas que também ajuda os apaixonados pela disciplina a lembrar-se de detalhes que nos trouxeram à conjuntura atual. Valendo-se de referências fortes e atualizadas, como o livro A Máquina do Ódio de Patricia Campos Mello, Gabi costura o passado e o presente e nos ajuda a compreender aonde tal cenário nos levará nos próximos anos. 

Se você nunca entendeu bem o que são legendas ou coligações, é essa a oportunidade de aprender esse e outros termos que sempre impedem o brasileiro médio de realmente entender os momentos políticos do país. Apesar de cursar ensino superior e ter vasto acesso à informação, me incluo na média e assumo que aprendi o que faz um Senador e porque as Forças Armadas não podem atuar como Poder Moderador (fake news constante de extremistas). Parece básico, mas sem isso fica difícil entender temas mais complexos como impeachment e Proposta de Emenda Constitucional (PEC), temas também abordados pelo livro. 

Do simples ao complexo, Gabi traz toda sua expertise em Direito e Ciências Políticas de maneira brilhante e rápida o suficiente para ler em uma tarde, sem deixar de lado a veracidade dos fatos e alusão a grandes autores, como Weber, Locke e Steven Levitsky. 

Título Original: Política é para Todos ✦ Autora: Gabriela Prioli
Páginas: 272 ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

31 de dezembro de 2021

Uma Separação | Katie Kitamura


A partir de agora posso constatar o fato que livros escritos por jornalistas são meus preferidos, dado seu teor visceral de realidade e prosa cheia de adrenalina: ponto comum aos grandes tabloides e livros bem escritos. E quando uma jornalista que já trabalhou no The New York Times decide escrever um thriller sobre divórcio? Não poderia ser menos perfeito que o terceiro romance de Katie Kitamura.

Em Uma Separação, temos a narrativa em primeira pessoa de uma mulher que está separando marido mas que aguarda em segredo a burocracia do jurídico, a pedido do cônjuge, Christopher. Depois de meses dessa vida conjugal suspense, ela acorda com uma ligação da sogra Isabella que pede que a nora busque pelo marido numa província da Grécia, onde estava antes de desaparecer completamente. Atônita e um pouco contrariada, a londrina decide ir buscar o caprichoso ex no paraíso dos deuses.

A partir de então, se sucede uma narrativa pesada com discursos indiretos e descrições inesperadas do cenário grego. Mani, a província onde se hospeda em um hotel luxuoso, está cercada por terrenos recém devastados por queimadas. Além disso, o comportamento mais distante e machista dos gregos é completamente diferente do que é vendido pela mídia, o que também traz outro tom à ambientação.

Nessa busca incessante pelo marido, a protagonista encontra as amantes que ele teve nos poucos dias na Grécia e reflete sobre todas as traições que levaram ao fim de seu casamento. Mas veja bem, aqui não temos a visão comum de vítima da pessoa traída, e sim uma postura de uma mulher que seguiu a vida nova e não se lamentará pelo conquistador nato com quem se casou. E é nessa altura que aparecem vários enxertos de importantes teorias da psicanálise e uma análise profunda das atitudes de Christopher.

Esse teor psicológico se mantém a outros personagens que aparece na trama, que são melhores descritos por seus comportamentos que por sua aparência. As análises de processo de luto, traumas e cura emocional são tópicos constantes enquanto se desenrola a busca por Christopher e uma falsa pesquisa sobre luto e morte, que era o tema do último trabalho a ser publicado por Chris antes do desaparecimento.

Foi, sem dúvida, uma das melhores leituras do ano e é o que eu descreveria como um livro que nos assusta pela descrição da própria realidade. Não tem cenas de suspense nem de crimes cometidos em primeira pessoa, mas ainda assim é apavorante porque pode acontecer conosco a qualquer momento. Além disso, o capítulo final é uma obra notável de literatura por si só, com seu tom de conversa e reflexão psicanalítica. Por fim, acredito que é uma recomendação forte para os fãs de thrillers psicológicos e livros que abordem processos de luto.


Título Original: A Separation ✦ Autora: Katie Kitamura
Páginas: 216 ✦ Tradução: Sônia Moreira ✦ Editora: Companhia das Letras

Livro recebido em parceria com a editora

9 de novembro de 2021

Uma Verdade Incômoda | Cecilia Kang & Sheera Frenkel


Uma Verdade Incômoda é uma biografia não-oficial do Facebook e de seu CEO fundador, Mark Zuckerberg. O livro foi escrito por duas jornalistas do New York Times, Cecilia Kang e Sheera Frenkel. Com o viés jornalístico e baseado em fatos, o best-seller é cotado para adaptação cinematográfica, ainda que o poderoso CEO já esteja protegendo-se legalmente para evitar a produção do documentário. A blindagem jurídica e parlamentar da rede social e do seu alto escalão é apenas um dos inúmeros escândalos que vem à tona nas páginas dessa leitura recomendadíssima para os fãs de tecnologia e mídias sociais.

Você sabia que mesmo que você delete sua conta do Facebook, os dados nela contidos estarão para sempre nos servidores? Sim, este é apenas um dos termos que concordamos apressadamente quando criamos conta nas redes sociais do Facebook, seja o próprio Blue ou Instagram e WhatsApp. Esse detalhe faz parte da transformação de como o singelo site TheFacebook que avaliava a beleza das estudantes de Harvard tornou-se um gigante com quase 3 bilhões de usuários. E não foi apenas a partir da nossa colaboração gratuita ao manter o site repletos de conteúdo, mas sim por abrirmos mão dos nossos dados pessoais que são comercializados para anúncios.

Do começo da programação nos dormitórios do Harvard até os escândalos envolvendo quebra de privacidade, fake news, discurso de ódio e a eleição de Donald Trump, o Facebook teve seus altos e baixos no Vale do Silício. A forma como as autoras abordam os dias de ouro e dias decisivos para o futuro da companhia é sagaz e não-linear. Foge na linearidade porque foca na ordem lógica dos fatos, que por serem reais, nem sempre são cronológicos. Além disso, quem tem dificuldades com nomes como eu, certamente gravará como se chamam os mais ilustres membros da diretoria e conselho administrativo da rede social, pois os nomes sempre vem acompanhados dos cargos e escândalos memoráveis.

Apesar de ser fascinada pelo Mark Zuckerberg e seu império, não compreendia a política bipartidária ou o parlamento estadunidense, e após esse livro sinto que aprendi mais. Quase todos os processos movidos contra a companhia passam por camadas políticas e jurídicas, então é uma leitura completa para entender como todo o sucesso, ascensão e possível queda são intrínsecas ao ambiente estadunidense.

Além do viés político, é possível entender a ligação do Facebook, Mark Zuckerberg e Sheryl Sandberg (Chief Operations Office) com a mídia e sites de extrema direita, como a Fox News. Assim como o livro que já resenhei aqui no blog, A Máquina do Ódio, Uma Verdade Incômoda mostra como além de serem uma ameaça às democracias, as redes sociais nos aprisionam e roubam nossos dados por nada mais que aprovação social como moeda de troca.

Título Original: An Ugly Truth ✦ Autoras: Cecilia Kang e Sheera Frenkel
Páginas: 384 ✦ Tradução:  Claudio Marcondes, Cássio de Arantes Leite, Odorico Lea 
Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

23 de setembro de 2021

Nada vai acontecer com você | Simone Campos


Um thriller nacional que começa doce, mas que em todos os momentos da narrativa te mantém preso às páginas e sem saber o que acontecerá nas páginas seguintes. Imprevisível, feminista e político, o romance de Simone Campos parece o compilado perfeito das minhas preferências literárias. Começando pela trama óbvia de duas irmãs muito diferentes que se veem separadas pelo destino, a autora consegue tangenciar o previsível e garantir que o leitor chegará ao último parágrafo ávido por mais.

Viviana e Lucinda são duas irmãs criadas no seio de uma família carioca bem sucedida no ramo jurídico e tributário. Com uma infâncias de gostos nerds, repletas de animes e referências artísticas conceituadas, era quase impossível que algo ruim acontecessem a elas. Apesar do divórcio dos pais, a matriarca Cássia manteve o padrão de vida da família com muito trabalho, mas o estilo workaholic deixou brechas de autoridade e supervisão no início da adolescência das filhas. 

A vida aristocrática das meninas era recheada de hobbies e novas atividades. Dentre estas, Lucy decide tentar a carreira de modelo, mas o convite se estende a Viviana, que logo decola nessa carreira e começa a viver bem dos frutos dessa nova atuação. Aliás, a dissimulação de Viviana é digna de uma das mulheres de Machado de Assis ou Jorge Amado. É uma personagem complexa, multifacetada, que sempre premedita suas ações e sabe controlar seus desejos, fazendo-os jogar a seu favor. Sua personalidade intensa esconde vários segredos que vem à tona, quando Lucy descobre que ela está desaparecida. Nesse ponto, saímos da vida aristocrática carioca perfeita e somos arremessadas às dores e delícias de ser mulher e não-branca no Brasil.

Com três pontos de vista em primeira pessoa de mulheres diferentes, todas usam charme, persuasão ou desespero para contornarem a sociedade machista. É impressionante como nos parágrafos sem diálogos, a autora consegue fazer divagações incríveis sobre aborto, feminismo, machismo, família tradicional brasileira e mais uma série de questionamentos sobre a base questionável sobre a qual nosso país se funda. 

Referências à Simone de Beauvoir e clássicos do cinema trazem reflexões sobre o que devemos ou não aceitar enquanto mulheres e quais limites devemos impor para não nos tornarmos caprichos de homens mentalmente instáveis. Homens que são o maior pesadelos de mulheres sem voz, presas em casamentos infelizes, como era Cássia no começo do livro, ou destinadas a esconder seus gostos nerds para não serem objetificadas, como Viviana. Sim, é um thriller de tirar o fôlego, mas também um convite ao autoconhecimento e um culto a protagonistas femininas incríveis.

Título: Nada vai acontecer com você✦ Autora: Simone Campos
Páginas: 192 ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

4 de junho de 2021

Hibisco Roxo | Chimamanda Ngozi Adichie

Kambili é uma adolescente nigeriana de 15 anos, pertencente a uma família bem rica e influente. Seu pai, Eugene — Papa, como é chamado pelos filhos —, apesar de ser um empresário extremamente bem sucedido e, consequentemente, bem visto pela sociedade, é um católico extremista que passou a julgar os costumes e as culturas africanos. Assim, Kambili e Jaja, seu irmão, cresceram em um ambiente cheio de dogmas, sendo constantemente punidos quando se desviavam dos "caminhos do Senhor".

A protagonista e seu irmão, apesar de terem inúmeros privilégios, não levam uma vida fácil. Todos os passos que dão visam agradar Papa, que é muito autoritário e opressor. Tudo deve ser feito à perfeição, caso contrário, são castigados. Mama, por sua vez, é amorosa e cuidadosa, mas totalmente submissa a Papa. Também é constantemente punida pelos seus atos sempre que Eugene julga que eles estão afastando a mulher de Deus. Portanto, sob o olhar de Kambili, acompanhamos um núcleo familiar totalmente hierarquizado e patriarcal, além de termos uma amostra do que foi a colonização. 

Durante toda a narrativa, tive a sensação que tudo o que Jaja fazia era unicamente para proteger a mãe e a irmã, mas Kambili era realmente influenciada pelos pensamentos do pai. Tinha medo, mas no fundo acreditava que tudo o que ele fazia era para o bem da família. Sua visão só começa a mudar quando tem a oportunidade de conviver com a tia, Ifeoma e seus filhos. Viúva e professora universitária, Ifeoma não possui tanto dinheiro quanto o irmão, ou seja, não pode dar para sua família todas as regalias as quais Kambili e Jaja estão acostumados, mas ainda assim todos vivem em um lar feliz, livre e saudável.

Hibisco Roxo me despertou vários sentimentos, alguns não tão bons. Apesar de ter plena consciência que Papa é apenas o resultado de um sistema corrompido, senti raiva dele o tempo inteiro. Desejei que coisas ruins acontecessem com ele, que ele fosse punido por todas as coisas abomináveis que fazia com a família. Depois, fiquei pensando... Se eu queria que ele fosse castigado bem como castigava sua família porque acreditava que o que eles faziam era ruim, o quão diferente sou de Eugene, afinal? Esse desejo de que as pessoas paguem pelos seus erros — vejam bem, coisas que nós julgamos serem erradas —, é uma característica inerente ao ser humano, no fim das contas.

Há alguns meses, ele escreveu dizendo que não queria que eu ficasse procurando os porquês, pois há certas coisas que acontecem e para as quais não podemos formular um porquê, para as quais os porquês simplesmente não existem e para as quais, talvez, eles não sejam necessários.

Uma cena em específico me marcou profundamente e vou ter que contá-la aqui porque certamente nunca vou esquecer o que li. Não é necessariamente um spoiler porque o trecho está estampado na contracapa do livro, mas caso não queiram saber, pulem o restante do parágrafo. Depois de um determinado acontecimento, Papa chega a conclusão que seus filhos pecaram e, para mostrá-los o que é caminhar no fogo do inferno, jogou água fervente nos pés deles. Passei muito tempo chorando depois de ler essas páginas, porque eu não simplesmente não consegui entender como uma pessoa, principalmente um cidadão adorado por fazer coisas boas para a comunidade, não consegue diferenciar amor de punição. É, de fato, o típico "cidadão de bem", né?

Não é por acaso que Chimamanda Ngozi Adichie é considerada uma das maiores escritoras da atualidade. Ela toca na ferida ao abordar temas tão complexos, ao escancarar realidades tão difíceis. Afinal de contas, é muito comum vermos o cristianismo ser usado como forma de opressão, e mais comum ainda famílias imersas na violência doméstica. Todas as vezes que Eugene é citado no decorrer da história a atmosfera fica tensa, porque necessariamente esperamos uma situação difícil de engolir. Justamente por isso tia Ifeoma é o elemento acalentador, porque sempre que ela surge, algo bom acontece.

Para além disso, Hibisco Roxo também é muito rico de passagens que exaltam a cultura nigeriana, o que é comum nas obras de Adichie. Somos transportados para a realidade histórica do lugar, conhecemos seus costumes, linguagem, culinária... Sempre é algo que aprecio muito acompanhar, principalmente porque dá para sentir o carinho que a autora tem pelas suas origens. É fácil entender o porquê seus livros são tão adorados e premiados.

O final de do livro é surpreendente e, de certa forma, agridoce. É triste, mas ao mesmo tempo é responsável pelo alívio que os personagens — e nós mesmos — precisavam. Terminei a leitura com uma certeza: alguns livros mudam a forma como enxergamos o mundo, e Hibisco Roxo faz parte dessa categoria. Eu não sou a mesma Ana Clara de antes e garanto que vocês também não serão a mesma pessoa após lerem essa história.

Título Original: Purple Hibiscus ✦ Autora: Chimamanda Ngozi Adichie ✦ Páginas: 328
Tradução: Julia Romeu  ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

28 de maio de 2021

Uma Terra Prometida | Barack Obama


Eu sou uma grande fã da Família Obama, desde a primeira vez que os vi no noticiário, quando ainda era uma criança. Isso porque é uma família unida conseguiram chegar ao topo do mundo, a Presidência da maior potência mundial. O que poucos sabem é a história que existe por trás do icônico negro que chegou lá mesmo tendo origem humilde e nenhuma relevância do seu sobrenome na política estadunidense. Boa parte dessa história já foi contada no best seller Minha História, de Michelle Obama. Mas diferente da visão mais pessoal da vida da família negra mais importante dos EUA, Barack foca sua narrativa nos aspectos políticos e desenlaces que aconteceram antes e após a permanência na presidência por dois mandatos consecutivos. 

Barack Obama é um nome diferente, porque possui origem havaiana e queniana, aspecto que lhe dava a postura calma e firme de lidar com a vida. Diferente do que muitos pensam, ele não era um jovem brilhante ou fora da curva em aspectos comuns. O superpoder de Barack era ser um líder comunitário nato, algo muito diferente dos perfis mais empreendedores que assumem cargos políticos nos EUA. E justamente por seu caráter diferenciado, conseguiu impactar diversas pessoas ao seu redor e chegar até a Universidade de Chicago e posteriormente, a Harvard a fim de aprender melhor como melhorar a situação dos negros e população em geral na tão segregada e desigual metrópole americana onde se graduou.

E a partir desse ponto, a vida de Barack começa a se tornar em 1996 o furacão de glória política que conhecemos, com a ajuda de Michelle e outros apoiadores, ele chega ao Senado Estadual de Illinois onde fica até 2004. E nessa parte a vida pública se mescla com o casamento com Michelle, a morte da mãe de Barack e posteriormente do pai de Michelle. Apesar dos altos e baixos, o livro também conta a história de amor dos dois de maneira muito pragmática, mas cada escolha de adjetivos mostra como o amor dos dois é inabalável e foi decisivo para todos os eventos felizes que o casal viveu. 

Uma das dificuldades da leitura começa pelo tamanho do livro, com suas 764 páginas, mas não é a maior. Para nós brasileiros, fica difícil entender a política estadunidense com apenas dois partidos e eleições em um formato muito indicativo e menos focado no voto direto como no Brasil. Então, em algumas passagens do livro eu precisei buscar na internet como funciona o sistema dos EUA. Como já é uma leitura extensa, ficou cansativo e demorado para terminar. 

Entretanto, se você realmente é fã da história dos Obama como eu, deve ter esperado o post mortem  dos mandatos de Barack avidamente e esse não será um problema. Existem alguns momentos que ele comenta como era sua rotina diária de uma maneira muito realista e você consegue se sentir dentro da Casa Branca. Definitivamente uma leitura obrigatória para quem quer entender mais sobre política internacional ou pretende ingressar em cargos representativos. 

Além disso, existem várias histórias paralelas de assistentes de campanha, de governo, guarda-costas, jardineiros, enfim, de todas as pessoas que cruzaram a história de Obama nesses mais ode 20 anos de vida pública. Me intriga como esse livro foi construído de maneira tão concisa, apesar da infinidade de eventos que sucederam-se para que ele ficasse pronto. Acredito que sua construção aconteceu aos poucos, a medida que a carreira de Barack avançava, do Senado Estadual, passando pelo Senado Nacional e chegando à Casa Branca. 

Por fim, acho importante evidenciar que não é um livro de caráter autobiográfico apenas. É a história dos Estados Unidos de 1980 até dos dias atuais narrada sob a perspectiva de Barack Obama. Inclusive, estou ansiosa por uma versão condensada e com imagens do livro, para que possa inspirar mais pessoas, principalmente os jovens, que precisam do exemplo de um líder comunitário negro que chegou à presidência sem perder o brilho nos olhos e lotando todos os espaços onde discursava, com índice de aprovação notável.

Título Original: A Promised Land ✦ Autor: Barack Obama
Tradução:  Berilo Vargas, Cássio de Arantes Leite, Denise Bottmann e Jorio Dauster 
Páginas: 764 ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora

21 de maio de 2021

Pequena Coreografia do Adeus | Aline Bei

Não tem como iniciar essa resenha sem antes falar um pouco sobre o fenômeno Aline Bei. A autora ficou conhecida por seu romance de estreia, O Peso do Pássaro Morto, que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura. Porém, o reconhecimento de seu primeiro livro não veio apenas por parte da crítica. Entre o público geral, O Peso do Pássaro Morto não passou despercebido e esteve entre as leituras da maioria dos leitores brasileiros nos últimos anos. Não apenas entre as leituras, mas entre os favoritos. Eu tive o prazer de ler seu primeiro romance em 2020 e ele ficou entre os meus favoritos do ano.

Aline Bei escreve o tipo de história que eu amo, aquelas que deixam um gosto amargo na boca e um aperto no peito, que tiram o leitor da zona de conforto, pois nos confronta com verdades difíceis de aceitar e realidades difíceis de olhar. Lembro que a leitura de O Peso do Pássaro Morto foi dura e pesada para mim, mas, mesmo assim, eu devorei o livro de uma vez só, como uma cena feia que o espectador não consegue parar de olhar.

Além disso, Bei possui uma escrita que cativa facilmente. Sua escrita poética em formato de versos é rápida e nem por isso perde a profundidade. Muito pelo contrário, a autora consegue colocar em uma única frase muito mais significado do que a maioria de nós consegue colocar em um parágrafo inteiro. Se você já viu uma entrevista com a Aline Bei, você percebeu que essa narrativa poética é parte de sua oratória normal. Aline Bei tem poesia dentro de si e seus textos transmitem isso de forma autêntica e única.

Com tudo isso em mente, é óbvio que minhas expectativas para seu segundo romance eram altas. Confesso que fui esperando receber o mesmo impacto que recebi com o primeiro. E sim, Pequena Coreografia do Adeus tem muito do que havia em seu primeiro livro, mas se reserva ao direito de ser novo e diferente à sua própria maneira. Aline Bei nos conta a história de Júlia e constrói em Pequena Coreografia do Adeus quase um romance de formação, que nos permite observar de perto a personalidade da personagem se formando, uma personalidade quebrada, machucada e traumatizada. Filha de pais separados, Júlia passa muito de seu tempo com a mãe, uma mulher igualmente quebrada que, infelizmente, deposita muitas de suas frustrações em Júlia, através, principalmente, de violência física, mas também com muita violência psicológica.

As surras que Júlia leva ao longo do livro são de fazer o leitor tremer, mas o que mais me abalou foi o comportamento passivo-agressivo de sua mãe, as ofensas veladas, as feridas na autoestima de Júlia, a forma como cada palavra da mãe trazia pedras e espinhos disfarçados. Por outro lado, temos a negligência e o abandono do pai, que se retirou e deixou a filha lá, mesmo sabendo o que acontecia. E Júlia também sente isso, apesar de seus sentimentos serem controversos. Afinal, ela ama o pai, que não a agride, mas o odeia por tê-la abandonado.

A rotina de Júlia na escola e em outros ambientes também é retratada. E é evidente que uma criança que é tratada com tamanha violência vai refletir isso em suas outras relações. A reflexão que Aline Bei deixa no ar ao longo da leitura é tão importante, pois evidencia quem são as crianças agressivas e porque elas se comportam dessa forma. Crianças falam e fazem aquilo que observam, ouvem e recebem. Logo, se uma criança vê os pais lidando com os problemas de forma agressiva, é bem provável que ela vá reproduzir esse comportamento. Resumindo: uma criança que apanha, é uma criança que bate.

Pequena Coreografia do Adeus, assim como O Peso do Pássaro Morto, é uma leitura desconfortável e dolorosa. E mesmo assim é impossível não gostar do livro. Eu odiei ver Júlia passando por tudo aquilo, apanhando, sendo negligenciada, abandonada, subestimada e ridicularizada, mas amei a forma como a autora soube ligar os pontos, quase como um mapa do desenvolvimento humano. Cada palavra e cada surra se transformando em uma marca que, na vida adulta, se tornaria uma dificuldade, um trauma, um bloqueio ou uma insegurança.

Que adultos nascem de crianças sem afeto? O que a negligencia, o abandono e a violência fazem com as pessoas? Essas perguntas não estão explicitadas no livro, mas elas estão lá, em cada linha escrita por Bei. A parte do livro que se reserva à vida adulta de Júlia é igualmente densa. Mesmo sem a convivência com a mãe e as surras, é como se Júlia carregasse a mãe consigo o tempo todo. Há sim momentos felizes ao longo da história de Júlia, mas eles são tão breves, que servem apenas para que o leitor tome fôlego antes de mergulhar novamente. Nas últimas páginas, eu quase prendi a respiração por medo de que algo horrível acontecesse a qualquer momento. E acontece? Bom, vocês precisam ler pra saber.

Seu segundo romance tem um ponto positivo em relação ao primeiro: mais páginas. Lembro que, quando terminei seu primeiro livro, apensar de estar emocionalmente cansada após a leitura, eu queria mais. Já em seu segundo romance, Aline consegue entregar uma história maior, o que me deixou muito satisfeita. Porém, mesmo com suas quase 300 páginas, o final abrupto me fez desejar algumas páginas a mais. Mas o que seria de um livro pra te tirar da zona de conforto sem um final abrupto, não é mesmo?

Eu amei o livro e vou seguir acompanhando a carreira de Aline Bei. É ótimo ver uma jovem brasileira obtendo reconhecimento com a sua escrita e eu só quero parabenizá-la por suas conquistas totalmente merecidas. Recomendo muitíssimo Pequena Coreografia do Adeus, a edição está linda e a arte da capa é muito bonita.

Título Original: Pequena Coreografia do Adeus ✦ Autora: Aline Bei
Páginas: 288 ✦ Editora: Companhia das Letras
Livro recebido em parceria com a editora 

8 de março de 2021

Conheça a História da ativista Malala Yousafzai através das edições da Companhia das Letras

Em 2012, Malala Yousafzai sofreu um atentado a tiro do Talibã que quase tirou sua vida. A paquistanesa tinha apenas 15 anos quando isso aconteceu, mas sua imagem já era conhecida internacionalmente por defender o direito à educação para todas as crianças, especialmente as meninas. O Talibã não gostava do discurso de Malala porque acreditavam que ela pregava uma educação ocidentalizada, ou seja, para eles as meninas não deviam ir à escola. 

Eu já conhecia a história de Malala, mas soube de muito mais detalhes ao ler Longe de Casa, livro em que contou sua jornada como refugiada. Após o ataque do Talibã, ela foi obrigada a deixar sua terra natal no Paquistão e passou a viver em Birmingham, na Inglaterra. Só conseguiu voltar ao vale do Swat em 2018, já com 20 anos de idade, e só de passagem com um grande esquema de segurança. Assim, ao ler Malala: Minha História em Defesa dos Direitos das Meninas conheci todas as situações que a fizeram chegar onde está hoje. 

A jornada de Malala é importantíssima e, portanto, deve ser conhecida por pessoas de todas as idades: nos ensina valores, quebra preconceitos religiosos e culturais e nos inspira. Quando levou aquele tiro, Malala nem imaginaria que ganharia o Nobel da Paz aos 17 anos por seu ativismo pela educação, tornando-se assim a pessoa mais jovem a ser laureada com o prêmio, ou que estudaria na Universidade de Oxford, uma das melhores do mundo. Acredito que, justamente por ser importante, a editora Companhia das Letras tem um livro que narra essa história para cada público alvo diferente.

O primeiro a ser lançado (em 2013) foi a autobiografia escrita em parceria com a jornalista Christina Lamb, Eu Sou Malala, com 360 páginas marcadas por detalhes de sua infância até sua recuperação milagrosa em Birmingham. Em 2015, foi lançada pela Seguinte a edição juvenil de Eu Sou Malala, em coautoria com a também jornalista Patricia McCormick, possuindo uma linguagem mais concisa e fluida. Nesse mesmo ano, a Companhia das Letrinhas lançou Malala, a Menina que Queria ir Para a Escola, com muitas imagens maravilhosas e texto simples, mas ainda muito informativo, elaborado por Adriana Carranca. Na minha opinião, é perfeito para crianças entre 7-10 anos!


Malala e Seu Lápis Mágico foi lançado em 2018 também pela Companhia das Letrinhas e foi elaborado pela própria Malala. Por ser composto de textos mais curtos, é totalmente adequado para crianças mais novinhas, e as ilustrações também são muito explicativas. Longe de Casa (2019) é o único com foco um pouco diferente, porque conta a história de meninas refugiadas de várias partes do globo que contam suas dificuldades de viver em países tão diferentes. É perfeito para jovens e super interessante para ser incorporado à lista literária das escolas, uma vez que apresenta inúmeras culturas, conflitos de diferentes países e inúmeros aprendizados sobre direitos humanos.
 
A edição infantojuvenil a qual tive contato é a mais recente! Malala: Minha História em Defesa dos Direitos das Meninas foi lançado em dezembro de 2020 e pretende atingir o público que está na transição da infância para a adolescência, aquela idade-limbo entre 10-13 anos, sabe? É cheio de ilustrações lindas de vários momentos importantes que aconteceram na vida da garota, mas também tem muito texto corrido. A narrativa também é muito simples, capta apenas o mais importante de cada período da vida de Malala, mas acredito que seja uma adaptação muito boa da versão original.

Eu gosto muito desse conceito de uma pessoa ser tão importante a ponto de existirem inúmeros livros sobre ela, de forma que qualquer um, qualquer um mesmo, possa conhecer seus feitos, sua trajetória. Me inspiro muito na Malala, porque ela não sente medo de lutar pelo que acredita e nunca desistiu, mesmo depois de tanto sofrimento. Não que eu romantize sofrer, mas que ela é um exemplo perfeito das expressões "nunca deixe de sonhar" e "não abandone seus ideais" ela é.