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26 de abril de 2025

A Menina e a Pipa (& a salvadora branca), de Laetitia Colombani


Aceitas uma resenha bem problematizadora hoje? Pois é o que teremos. Prontas? Eu poderia resumir A Menina e a Pipa assim: uma professora francesa de luto resolve fazer algo que os europeus ricos adoram: ir para um país considerado de terceiro mundo para "se curar". No processo, ela descobre que pode, com seu dinheiro e seu conhecimento, ajudar os mais necessitados. O que é ótimo, claro, mas ela faz isso ao estilo europeu: se sentindo a pessoa mais incrível e altruísta do mundo.

Mas vamos começar do começo. A tal francesa se chama Léna e ela passou por uma experiência traumática. De início, o leitor não sabe exatamente o que aconteceu, mas entendemos que Léna perdeu o marido. Abalada e buscando se curar e se reconectar consigo mesma, ela decide passar um tempo vivendo no Golfo de Bengala, na Índia.

Um dia, Léna quase se afoga no mar e é salva por uma menina e uma mulher. Mais tarde, Léna descobre que a mulher em questão é a líder de um grupo local que se intitula Brigada Vermelha: um grupo de mulheres que praticam defesa pessoal e cuidam da segurança das mulheres da região. Toda a parte envolvendo a Brigada Vermelha é muito interessante. Se o livro fosse só sobre isso seria ótimo, mas a europeia não ia aceitar não ser o centro das atenções, né?!

Inclusive, a tal Brigada Vermelha existe mesmo e, pelo que pude checar, todas as informações contidas no livro são reais, incluindo a história de sua fundadora, Usha Vishwakarma, que, em 2016, foi reconhecida como uma das 100 mulheres de maior sucesso da Índia pelo Presidente do país. Segue uma explicação impactante apresentada no livro:

Aqui, o estupro é um esporte nacional, declara a chefe. E os criminosos nunca são castigados: as denúncias raramente levam a investigações, menos ainda quando as vítimas são de classes baixas. Diante da inércia das autoridades, as mulheres precisaram se organizar para garantir a própria segurança.

Léna acaba se aproximando dessas mulheres, que são muito mal vistas pelos locais, e da menina, Lalita, que não fala, mas demonstra um profundo interesse por Léna. Aos poucos, Léna percebe que não só Lalita, mas muitas meninas da região são analfabetas.

Bem-vinda à Índia, murmura. Ali, as meninas não estudam, ou se estudam é por pouco tempo. Não se considera útil educá-las. É preferível mantê-las em casa e ocupá-las com tarefas domésticas, antes de casá-las com alguém assim que atinjam a puberdade.

Léna decide mudar essa triste realidade dando aula para as meninas da região: "Em uma noite mais agitada do que as outras, Léna tem uma ideia. Uma ideia singular, surreal. Construir uma escola em Mahabalipuram."

Tudo muito legal, né?! Mulheres unidas, aprendendo a ler, escrever e lutar. No entanto, na versão de Laetitia, esse grupo de mulheres é liderado, organizado e coordenado por uma francesa bondosa. Quero deixar claro que não há nenhum problema na atitude da personagem. Espero que, na vida real, existam muitas Lénas fazendo coisas parecidas. Mas muito me incomoda a prepotência de criar uma personagem europeia e a retratar de forma quase angelical levando educação a crianças indianas tal qual uma grande salvadora branca.

"Salvador Branco" é um termo sarcástico e crítico que define uma pessoa branca que é descrita como libertadora, salvadora ou edificante para as pessoas não-brancas. Muito retratado na mídia, o salvador branco geralmente surge para resgatar pessoas não-brancas de uma situação de violência ou injustiça, normalmente impondo seus valores e vontades de forma vertical. Também é frequente que o salvador branco seja um branco viajando para um local "exótico".

Muitos filmes já foram criticados por retratarem e enaltecerem salvadores brancos. Entre eles: 12 Anos de Escravidão, Django Livre, Diamante de Sangue, Avatar, Duna, Gran Torino, O Último Samurai e A Grande Muralha. Sobre este último, a atriz Constance Wu fez o seguinte comentário"Temos que parar de perpetuar o mito racista de que apenas um homem branco pode salvar o mundo. Não é baseado em fatos reais. Nossos heróis não se parecem com Matt Damon."

Ouso dizer que os heróis indianos também não se parecem com uma professora francesa traumatizada.

No livro, Léna está constantemente dando ordens às outras mulheres, dizendo o que elas devem ou não fazer. Um trecho específico que me incomodou bastante é quando Léna percebe que as meninas faltam às aulas quando estão menstruadas. O livro explica muito brevemente sobre como a menstruação é um tabu na Índia, mas a resolução é basicamente Léna fazendo as meninas prometerem que não faltarão às aulas quando estiverem menstruadas. Ah, ela também faz um discurso sobre a importância de os panos (que as meninas usam para se limpar e para absorver a menstruação) estarem sempre "cuidadosamente" lavados. Isso tudo logo depois de explicar que "No campo, as escolas não têm banheiro; as meninas precisam se afastar e se esconder na mata para fazer o procedimento. Elas têm vergonha e medo de ser descobertas, até agredidas." Ou seja, um problema complexo sendo solucionado de uma forma simples. A Salvadora Branca ataca novamente.

Não vou mentir: eu não acho que o plot de "encontrar a cura ajudando os outros" seja ruim. É de fato muito poético e tocante ver alguém se curando enquanto ajuda outras pessoas. Mas a forma messiânica como isso é feito é profundamente perturbadora e é difícil acreditar que histórias assim continuam sendo escritas. Vejam esse trecho:

As garotas com quem convive não terão nenhuma outra oportunidade de se educar: a escola é a única escapatória possível da prisão invisível na qual a sociedade deseja trancafiá-las. Léna terá que lutar contra essas correntes. Será preciso enfrentar os perigos, opor-se aos adversários com toda a sua inteligência e a sua determinação. O combate promete ser demorado.

A Léna sendo descrita como uma guerreira solitária lutando sozinha contra os costumes milenares de um país "com toda a sua inteligência e a sua determinação" chega a me dar vergonha.

Pra além de toda essa questão problemática, vale dizer também que o livro carece de profundidade. Em vários momentos, eu achei a narrativa um tanto quanto jornalística: sem emoção, apenas descrições. As intenções da protagonista não ficam claras, porque o livro não se importa em esclarecer seus sentimentos e pensamentos ao leitor.

Antes da metade do livro eu já estava completamente desinteressada e irritada com toda a importância que Léna dá a si mesma e às suas ideias geniais. Mesmo assim, insisti. O final não é de todo ruim. Na verdade, o final traz um tom levemente diferente, mais pessoal, focado na transformação que Léna teve e não na que supostamente causou. Se todo o livro tivesse tido esse tom mais pessoal, de uma pessoa se encontrando e se curando, teria sido muito melhor. O problema foi a insistência em transformar Léna numa heroína branca salvando pessoas não-brancas ao invés de focar apenas no fato de ela ser uma mulher em luto buscando se reconectar consigo mesma e se curar enquanto explora um país novo.

Enfim, se você não for uma chata problematizadora como eu, provavelmente você vai apreciar bem mais essa leitura. Acredito que, se você focar no aspecto pessoal do processo de cura da Léna, a leitura funcionará muito bem. Todo o trabalho de diagramação e tradução da Intrínseca está impecável, como sempre. A capa é linda, a leitura é confortável e eu não encontrei um errinho sequer. 

Título Original: Le cerf-volant ✦ Autora: Laetitia Colombani
Páginas: 192 ✦ Tradução: Sofia Soter ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora

14 de abril de 2025

O que a comunidade incel, o thriller Garota Invisível e a série Adolescência da Netflix tem em comum?

Recentemente, o termo incel voltou a ganhar destaque por conta do sucesso da mini série Adolescência da Netflix, que acompanha um adolescente acusado de assassinar uma colega de escola. A série vem sendo muito comentada nas redes sociais, tanto por sua qualidade técnica, já que cada um dos quatro episódios foi filmado em um longo plano sequência, quanto pelos temas que ela aborda e pela forma como mostra que tipo de adolescentes a internet e as redes sociais vêm "criando".

Incel é a junção das palavras involuntário e celibatário. Os incels seriam, portanto, homens heterossexuais que culpam as mulheres e a sociedade pela falta de sucesso romântico e sexual. Na lógica desses homens, as mulheres se tornaram muito exigentes e, por isso, muitos homens não estão obtendo sucesso para encontrar mulheres para se relacionar, frustrando-se e destilando ódio por elas. Para muitos incels, mulheres são privilegiadas, protegidas pelo poder público e altamente seletivas sexualmente. Um incel pode ser desde um jovem virgem, tímido e frustrado, até um homem raivoso e violento que encontra justificativa nessa lógica absurda para abusar de mulheres

Conseguem imaginar a minha surpresa quando peguei pra ler o livro Garota Invisível, lançamento da Intrínseca, e me deparei com o termo incel? Ainda impactada com a série Adolescência, eu mergulhei nessa leitura e finalizei o livro em menos de 24 horas. Garota Invisível é um thriller que aborda o submundo dos fóruns incel da internet.

No livro, acompanhamos três pontos de vista: Saffyre é uma jovem traumatizada que é mandada para a terapia após sua família descobrir que ela se mutila. Cate é uma mulher que vive seus dias tomando conta da casa, dos filhos e do marido (que é o psicólogo de Saffyre). Cate e o marido estão se recuperando de uma crise no casamento. Por último, o terceiro ponto de vista é de Owen, um professor de 33 anos de idade que nunca teve um relacionamento amoroso e que acaba de ser afastado do trabalho por conta de uma acusação feita por suas alunas. Revoltado com a acusação, Owen encontra consolo num fórum incel.

Enquanto Adolescência parece um thriller, mas é um drama, Garota Invisível parece um drama, mas é um thriller. Saffyre irá desaparecer e a investigação envolverá a todos. Thriller está longe de ser meu gênero literário favorito. As fórmulas pré-prontas e replicáveis me incomodam um pouco. Na verdade, quando peguei Garota Invisível pra ler, minha motivação tinha sido o fato de ter um personagem psicólogo. Eu, como psicóloga, adoro ver como minha profissão é retratada na literatura e no cinema. Garota Invisível segue o padrão dos thrillers de ir desenrolando a história aos poucos, mantendo a tensão e revelando informações importantes em momentos estratégicos. 

Apesar de não ser meu tipo favorito de leitura, Garota Invisível conseguiu me envolver rapidamente. Passei horas conversando com meu marido sobre o livro e entrei a madrugada lendo. Saffyre é uma narradora muito interessante. Seus traumas fazem dela uma personagem cheia de camadas e complexidade. Mas meu ponto de vista favorito foi o do Owen, porque ele é um personagem difícil de compreender, principalmente porque nem ele mesmo se compreende. Eu entendo perfeitamente as intenções da autora com esse personagem, mas ainda não tenho uma opinião formada sobre isso. Posso dizer que Lisa Jewell escolheu um caminho perigoso para o personagem (desculpa a frase misteriosa, mas não quero dar spoiler).

A parte que menos gostei do livro foi a resolução do mistério e a conclusão. Achei confusa e desnecessariamente mirabolante (algo que vejo constantemente em thrillers). Mesmo assim, ler esse livro foi uma experiência muito boa, principalmente pelas reflexões que ele propôs, sobre como as aparências enganam, sobre o perigo dos fóruns incels e sobre o risco de nos vermos seduzidos por ideias insanas quando estamos emocionalmente fragilizados.

Adorei a leitura e tenho certeza que é um livro que vai agradar a grande maioria dos leitores. Lisa consegue unir mistério, drama familiar e crítica social numa obra envolvente e coesa. Recomendo!!!

Título Original: Invisible Girl ✦ Autora: Lisa Jewell
Páginas: 384 ✦ Tradução: Karine Ribeiro ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora

7 de abril de 2025

Top Comentarista: Abril 2025


Todos os meses euzinha começando o post do top comentarista pedindo desculpas pelo atraso, mas é isso, amores. Abril é o mês do meu aniversário — que é hoje, inclusive, 07/04 — e eu sempre fico muito animada com a chegada dele. Esse ano tô um pouquinho pra baixo com as mil e uma coisas que tão acontecendo na minha vida, mas com a fé de que as coisas voltarão para os eixos. Gente, cês acreditam que eu tô fazendo trinta anos? Mas se me perguntarem, juro que tenho no máximo 23 😹. Bom, vamos finalmente ao top?

As regrinhas continuam as mesmas, mas não custa relembrar, né? Nos primórdios do blog, era obrigatório comentar em todas as postagens para não ser desclassificado do concurso, mas agora vocês são sorteadas a partir dos comentários. Isso significa que não é obrigatório comentar em todos os posts: cada comentário que vocês fizerem devem ser cadastrados no formulário do Rafflecopter, que só aceita uma entrada por dia — recomendo que vocês comentem e preencham o formulário sempre que sair post novo, já que quanto mais comentários cadastrados, maior a chance de ganhar. Todos os meses um comentário será sorteado pelo aplicativo. Outra coisa, agora que o Twitter ressuscitou, voltei com as entradas referentes à ele no formulário, fiquem atentas!

Atenção: só preencha o formulário nos dias em que comentar no blog. Por exemplo, se em determinado mês tiverem 13 posts, o número máximo de entradas que cada participante pode ter no formulário é 13! Outra coisinha: já tem alguns anos que o Rafflecopter não é mais responsivo, então acho que no computador a visualização fica melhor! Até pensei em fazer o formulário pelo Google, mas o sorteio é mais trabalhoso para mim. Quaisquer dúvidas, podem entrar em contato comigo no Twitter ou Instagram! 💖

O prêmio é um vale de trinta reais na Amazon! Ah, as chances extras continuam: comentar nos posts do Instagram e tweetar sobre o top todos os dias em que tiver postagem nova por aqui, então aproveitem! Caso tenha restado alguma dúvida, podem me procurar nas redes sociais, tá bom?

Observações
- O período de validade desse top comentarista é de 07/04/2025 à 30/04/2025. Cada comentário que vocês fizerem devem ser cadastrados no formulário do Rafflecopter, que só aceita uma entrada por dia.
Não serão computados comentários genéricos, só aqueles que exprimem a opinião do leitor e mostram que ele realmente leu o post. Comentários plagiados de outras plataformas (lembrem-se que plágio é crime) ou que se repetem em outros blogs não serão considerados. Comentários do tipo serão excluídos sem aviso prévio e o participante será automaticamente desclassificado;
- É permitido apenas um comentário por post;
- É obrigatório seguir o Roendo Livros via GFC e seguir o perfil @anadoroendo no Instagram para validar a participação;
- A entrada "tweet about de giveaway" só será válida se a pessoa estiver seguindo o Twitter informado (@anadoroendo);
- Após o término do top, o Roendo Livros tem até 30 dias para divulgar o resultado;
- O ganhador tem 48h para responder o e-mail com os dados de envio, caso contrário o sorteio será refeito. O livro escolhido (na faixa de preço estabelecida) deverá ser informado no corpo do e-mail;
- Após feito o contato, o prêmio será enviado dentro de até 60 dias úteis;
- Para o livro ser enviado, é necessário que o ganhador passe o número do CPF para a Ana, já que agora os Correios solicitam uma declaração de conteúdo (saiba mais aqui) Só participe do sorteio se estiver de acordo;
- O Roendo Livros não se responsabiliza por extravio ou atraso na entrega dos Correios, bem como danos causados no livro. Assim como não se responsabiliza por entrega não efetuada por motivos de endereço incorreto, fornecido pelo próprio ganhador, e ausência de recebedor. O livro não será enviado novamente;
- O Roendo Livros se reserva o direito de dirimir questões não previstas neste regulamento.
- Este concurso é de caráter recreativo/cultural, conforme item II do artigo 3º da Lei 5.768 de 20/12/71 e dispensa autorização do Ministério da Fazenda e da Justiça, não está vinculada à compra e/ou aquisição de produtos e serviços e a participação é gratuita.
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27 de março de 2025

Mar da Tranquilidade, de Emily St. John Mandel: uma leitura quase 5 estrelas

Vai ser difícil escrever essa resenha, mas vamos lá: vou começar dizendo que a vontade de ler esse livro surgiu depois que o Victor Almeida (Geek Freak) o indicou. Eu gosto das indicações do Victor porque, na maioria das vezes, nossos gostos combinam e as recomendações dele quase sempre funcionam comigo.

Recebi o livro e demoreeeeei pra começar a ler. Não sei explicar o porquê, mas toda vez que eu via o livro em cima da minha mesa, eu simplesmente preferia fazer qualquer outra coisa. Até que, cansada de procrastinar essa tarefa, eu iniciei a leitura. Foi difícil no começo e até procurei resenhas de outras pessoas pra tentar entender o que eu não estava conseguindo captar da história. E o tempo todo pensando: "Victor, você me prometeu!"

Essa dificuldade para me conectar com a história aconteceu principalmente porque não se trata de UMA história, mas de várias, em diferentes lugares e tempos. Começamos acompanhando o jovem Edwin St. Andrew, em 1912. Em seguida, o livro da um salto de 108 anos e nos apresenta outros personagens no ano de 2020. Mais algumas páginas e conhecemos Olive, uma autora em turnê de lançamento de seu novo livro no ano de 2203, quando os humanos já povoaram a lua. Mas é só na parte 4 do romance, que se passa no ano de 2401, que iremos conhecer nosso personagem principal (ou o mais próximo que temos de um personagem principal neste livro), Gaspery. E é só a partir daí que tudo vai fazer sentido, pois há uma estranha experiência que conecta todos esses personagens.

No geral, eu preciso de tempo para me envolver com uma história e fica difícil me vincular quando o livro fica pulando de uma época para outra. Então eu tive que insistir. E valeu muuuuito a pena ter insistido. Não que a história seja 100% original. Na verdade, eu tenho certeza que você, assim como eu, já assistiu ao menos um filme ou leu pelo menos um livro com essa mesma temática. Mas é uma temática tão interessante que não se esgota facilmente. E a autora, Emily St. John Mandel, conseguiu trazer inovação e, principalmente, sentimento pra essa história, com uma pitada de dilemas morais.

Eu sei que estou soando misteriosa e gostaria de poder falar mais sobre minha experiência, mas eu realmente não quero estragar o seu processo de leitura, pois tudo que eu disser a partir daqui será um grande spoiler (apesar da sinopse entregar TUDO). Eu não sou o tipo de leitora que gosta de ficar tentando desvendar os mistérios de um livro. Eu gosto de me deixar levar e de me permitir ser surpreendida na hora que a autora quis que eu me surpreendesse. Isso, na minha opinião, também garantiu que minha experiência de leitura fosse boa, porque eu senti o impacto de cada plot twist. Se você também gosta de se surpreender com o andamento da história enquanto ela acontece, não leia a sinopse do livro. Mas, mesmo lendo a sinopse e sabendo o tema principal, eu garanto que a leitura tem muito mais a oferecer. A revelação final é realmente incrível e muito tocante.

Mas não só de plot twists sobrevive um bom livro, né?! Mar da Tranquilidade também é cheio de reflexões tocantes sobre a vida e as conexões humanas. Eu marquei várias frases e é evidente que a bagagem literária da autora é grande, pois há também várias citações e paráfrases ao longo da história. 

Um personagem que me interessou muito foi o primeiro apresentado no livro: o jovem de 1912. Todos os personagens voltam a aparecer posteriormente e eu aguardei ansiosamente o reaparecimento dele. Fiquei pensando que eu facilmente leria um livro inteiro só sobre ele e sobre tudo que o livro não mostrou da vida dele.

É divertido pensar que todas as respostas estiveram ali o tempo todo e esse é um daqueles livros que você tem vontade de voltar ao início assim que termina de ler, pra tentar ver os sinais que você ignorou na primeira leitura.

Terminei o livro com muitos sentimentos. Não foi uma leitura 5 estrelas pra mim, mas chegou muito perto. A história é muito boa, mas faltou envolvimento. Estranhamente, eu cheguei a conclusão de que faltaram páginas. Eu queria mais dessa história, com mais detalhes, mais desenvolvimento e menos saltos abruptos no tempo. Queria ter me apegado mais aos personagens pra ter me importado mais com as coisas que aconteciam com eles. O livro já tem uma carga emocional forte, mas com mais páginas isso teria sido ainda mais intenso. E digo isso principalmente quanto ao Gaspery. A história dele é linda e comovente, mas suas escolhas e decisões são pouco contextualizadas, simplesmente porque parece que não o conhecemos tão bem e não entendemos seus valores e o que o motiva.

Eu diria que foi uma leitura 4 estrelas, mas favoritada. Vocês favoritam livros que não são 5 estrelas? Pra mim não é tão comum, mas acontece de vez em quando. E aconteceu com Mar da Tranquilidade. Foi uma leitura emocionante e inteligente, mas poderia ter sido ainda melhor se eu tivesse me apegado mais aos personagens.

Título Original: Sea of Tranquility ✦ Autora: Emily St. John Mandel
Páginas: 272 ✦ Tradução: Débora Landsberg ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora

20 de março de 2025

Olhe de Novo, de Tali Sharot e Cass R. Sunstein: uma reflexão sobre a capacidade de ser (re)impressionar com o cotidiano


Recentemente, eu, aos 31 anos de idade, viajei de avião pela primeira vez na vida. Durante o voo, enquanto eu olhava pela janela com olhos marejados, vendo as nuvens passando e o solo ficando mais e mais distante, reparei em outros passageiros, claramente habituados com aquela experiência, indiferentes à paisagem. Alguns até mantiveram suas janelas fechadas e passaram a viagem toda sem admirar aquela vista surreal. Por dentro, eu estava gritando: "Você está perdendo isso. Eu sei que você já viajou de avião antes e que isso não é novidade pra você, mas olhe de novo. É lindo! Você precisa ver!"

Olhe de Novo, livro publicado no Brasil em 2025 pela Intrínseca, vai falar justamente sobre isso: a importância de não se habituar completamente, de preservar a capacidade de se maravilhar com o velho e de recuperar a sensibilidade frente àquilo que já virou rotina. Quem não se lembra de uma primeira vez emocionante, né?! A primeira noite na casa nova, o primeiro dia de trabalho naquele emprego tão sonhado, a primeira vez que você ouviu aquela música que se tornou a sua favorita. Nós, leitores, dizemos frequentemente que queríamos "desler" um livro que amamos só para podermos ler de novo pela primeira vez, sentindo todas as emoções e surpresas.

Como psicóloga, muitas vezes eu busco, junto a minhas pacientes, a chamada habituação. Quando lidamos com medos e fobias em terapia, precisamos expor graduadamente o paciente àquilo que o deixa ansioso para, dessa forma, gerarmos um processo de dessenssibilização e habituação. Recentemente, tratei uma jovem com fobia de agulha e foi justamente isso que fizemos (essa história termina com ela colocando um piercing kk'). Por outro lado, como afirmam Sharot e Sunstein, habituar-se a tudo pode ser um problema.

O excesso de habituação pode nos levar a parar de apreciar as belezas da vida comum, os prazeres da rotina e as qualidades de nossos companheiros. Os autores vão ainda mais longe e afirmam que a habituação às coisas ruins também pode ter efeitos negativos. Isso porque, quando nos habituamos a algo ruim, nos desmotivamos a buscar a mudança. Se você se acostuma àquele trabalho ruim ou àquele relacionamento tóxico, você corre o risco de se acomodar. Mas como manter o encantamento com o cotidiano? E como não se acomodar ao que é ruim e nocivo? São essas e outras questões que os autores irão explorar ao longo do livro.

Eu gostei muito dessa leitura e sempre gosto de enaltecer livros com fundo técnico publicados por editoras que não são especialistas nesse tipo de publicação. A Intrínseca, inclusive, tem trazido ótimos títulos voltados para a área da Psicologia, Neurociência e Saúde Mental.

Uma das ideias mais intrigantes do livro é a de que "as coisas boas da vida só vão desencadear uma explosão de alegria se você as tiver de vez em quando". Aposto que você tem vários exemplos disso na prática. Eu, por exemplo, sempre amei Pizza Hut. Na minha cidade não tinha essa franquia, então eu comia sempre que viajava. Era sempre tão bom e tão prazeroso. Então eu me mudei e na minha nova cidade tem Pizza Hut. No início foi um sonho, chegou ao ponto de eu passar uma semana inteira comendo Pizza Hut todos os dias. Adivinhem o que aconteceu? Isso mesmo: eu enjoei. Faz meses que não como Pizza Hut. A conclusão dos autores é interessante: se você quer manter o encantamento, faça pausas, pois "o prazer resulta da satisfação incompleta e intermitente dos desejos".

Ao longo do livro, os autores fazem conexões entre a habituação e a criatividade, a saúde, a avaliação de riscos e a felicidade, além de analisarem eventos históricos e conceitos sociais pela perspectiva da habituação, explorando, por exemplo, a forma como as sociedades se habituam a coisas terríveis, o que eles chamam de habituação das massas.

Olhe de Novo é uma leitura fácil e cheia de insights e reflexões pessoais. Adorei a capa, que é simples, mas brinca com a ideia de limpar os olhos para ver melhor. Recomendo!

Título Original: Look Again ✦ Autores: Tali Sharot e Cass R. Sunstein
Páginas: 240 ✦ Tradução: Cláudia Mello Belhassof ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora

17 de março de 2025

Um olhar científico sobre o livro Terapeuta de Bolso, de Annie Zimmerman

Eu já expressei aqui no blog algumas vezes o apreço que eu sinto com o catálogo de livros sobre Psicologia e Saúde Mental da Intrínseca. Sempre que vejo um novo título, especialmente aqueles escritos por profissionais e pesquisadores da área, eu me interesso. Com Terapeuta de Bolso não foi diferente. O livro, escrito pela psicoterapeuta e pesquisadora Annie Zimmerman, promete ajudar as pessoas a se libertarem de velhos padrões e transformarem sua vida. Apesar da promessa um pouco exagerada, a autora realmente conseguiu incluir alguns assuntos interessantes e dicas muito boas.

O livro aborda problemas e desafios pontuais e fornece dicas e estratégias pontuais para lidar com eles. Os capítulos falam sobre temas como depressão, ansiedade, traumas, dependência, relacionamentos, solidão, traição, término e luto. A autora introduz através de histórias de pacientes ficctícios, demonstrando como acontece o trabalho prático do psicoterapeuta. É interessante acompanhar caso a caso, se identificar com os "personagens" e ver como a autora trabalhou cada assunto.

Porém, eu não gostei desse livro tanto quanto eu gostei de outros no mesmo estilo publicados pela editora. De todos os que li recentemente, esse foi o que eu achei menos "científico". Por exemplo, outro título publicado pela Intrínseca que eu li recentemente e também resenhei aqui no blog, chamado Felicidade Não é a Cura, traz conceitos muito bem embasados científicamente, enquanto que este parece mais um amontoado de reflexões, pensamentos e conclusões pessoais.

O perigo das conclusões pessoais é que elas não são verdades científicas e, logo, não servem para todo mundo. E, se estão impressas num livro, muitas pessoas vão achar que as respostas que estão ali são verdades absolutas. Vamos aos exemplos:

Na página 118, a autora afirma que "uma crítica interior é sempre uma crítica exterior que foi internalizada". Não! Apenas não. Uma crítica interior pode ter diversas origens, como comparações, autocobrança excessiva, rigidez cognitiva e, sim, uma crítica exterior que foi internalizada. Mas não se resume a isso.

Na página 156, Annie diz que "relacionamentos fantasiosos são uma defesa contra a intimidade. Enquanto acontecem na nossa cabeça, não estamos arriscando o amor verdadeiro". Fonte? Nenhuma! Fantasiar relações ou idealizar parceiros pode ter diversas causas e pode, inclusive, ter influencias midiátiicas envolvidas. Quem nunca quis viver um relacionamento digno de uma comédia romântica dos anos 2000?

O livro está repleto de declarações deterministas desse tipo e eu me pergunto: como alguém que trabalha com a mente e o comportamento humano pode ter uma visão tão limitada das experiências humanas? Eu tenho 8 anos de atuação como psicoterapeuta e se tem uma coisa que eu aprendi é que nada é simples, nada é preto no branco e toda experiência é subjetiva. Não existe resposta padrão. Não existe solução simples para problemas complexos.

O problema de você achar que tem todas as respostas é que você não se abre para ouvir genuinamente e entender o outro de verdade. Imagina você chegar na terapia, começar a expor seu problema e a psicoterapeuta dizer "É isso!!!!" sem te dar chance de explorar melhor aquilo, sem analisar seu caso de forma individual e subjetiva. Para a autora, tudo que o paciente trás é a "ponta do iceberg" (essa expressão é usada incontáveis vezes). E ela, claro, é quem tem as respostas e sabe o que está no inconsciente do iceberg (vocês não estão vendo, mas estou revirando os olhos agora). 

Mas, por outro lado, o livro também trás algumas (poucas) boas reflexões, como alertar sobre a importância de aceitarmos nossas emoções e sabermos comunicá-las. Pra não citar só trechos horríveis, vou citar um bom aqui. Na página 277, a autora diz que "aprender a confiar nas pessoas tem menos a ver com encontrar alguém que nunca vai nos machucar, e mais a ver com aprender a confiar que seremos capazes de lidar com a situação se elas nos traírem". E sim!! Quando trabalhamos confiança em terapia estamos trabalhando a sua confiança em si mesmo e na sua capacidade de lidar com os problemas e desafios que aparecerem. Não uma confiança cega nos outros, mas uma confiança realista em si mesmo.

Enfim, como psicóloga que adora ler livros de Psicologia, eu infelizmente não gostei desse livro. Tem toda uma questão sobre abordagem psicológica que eu não estou nem um pouco a fim de abordar, porque esse assunto é polêmico. Mas, minha dica é: se você estiver em busca de ajuda psicológica, cuidado com abordagens que não cumprem todos os critérios tradicionalmente exigidos para serem classificadas como ciência.

Título Original: Your Pocket Therapist ✦ Autora: Annie Zimmerman
Páginas: 320 ✦ Tradução: Paula Diniz ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora