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12 de dezembro de 2025

O Ninho do Pássaro é mais um acerto de Shirley Jackson?

Desde que eu li A Assombração da Casa da Colina (que inspirou a série da Netflix, A Maldição da Residência Hill), eu não perco uma oportunidade de ler Shirley Jackson. A autora, que é considerada uma das maiores autoras de horror e mistério norte-americanas, inspirou autores como Stephen King e Neil Gaiman.

Jackson constrói seus horrores sem depender de monstros e fantasmas. Frequentemente, a autora sugere o horror de forma sútil e implícita: nas tensões domésticas, nos medos mais íntimos e nas mentes instáveis. Em minha opinião, Jackson é brilhante e atemporal.

Ela frequentemente explora traumas, repressões e inseguranças. E faz tudo isso de forma quase clínica, especialmente em O Ninho do Pássaro. Outra característica marcante de suas histórias é o questionamento de normas sociais, especialmente as que envolvem expectativas sobre mulheres, família e comportamentos socialmente aceitáveis.

Enfim, essa resenha é uma resenha inversa, porque eu já vou começar dizendo que eu amei O Ninho do Pássaro (assim como amo tudo que já li da Rainha Shirley). E agora sim, vou explicar pra vocês porque esse livro é mais um acerto da autora.

O Ninho do Pássaro nos apresenta à Elizabeth Richmond, uma jovem de 23 anos que mora com a tia, trabalha em um museu e vive seus dias de forma tímida, discreta e quase sem ser notada por ninguém. Elizabeth é, de forma muito direta, insignificante e desinteressante.

No entanto, Elizabeth começa a apresentar alguns problemas de saúde que a levam ao Dr. Victor Wright. A partir disso, a história revela sua verdadeira complexidade: Elizabeth não é uma pessoa tão desinteressante assim, ela tem diferentes personalidades coexiatindo dentro dela

Cada personalidade possui uma identidade própria, características específicas e até modos diferentes de falar e de se comportar. Essa fragmentação se transfere também para a narrativa do livro, com pontos de vista que se alternam e dão ao leitor um panorama mais completo da situação.

Particularmente, eu adorei os capítulos narrados pelo Dr. Wright. Apesar de não simpatizar com a pessoa dele, o olhar clínico que ele traz e sua narrativa ácida e cínica me conquistaram. Mas, é claro que gostar de sua narrativa é diferente de gostar ou de concordar com ele. Victor possui uma preferência nojenta por uma das personalidades de Elizabeth: aquela que é mais doce, simpática e inocente. Óbvio.

As influências da Psicanálise ficam evidentes na história e Shirley Jackson demonstrou amplo conhecimento sobre vários temas, incluindo hipnose, que é usada pelo Dr. para acessar as outras personalidades. A personalidade mais interessante e que até ganha um capítulo sob seu ponto de vista é Betsy. Rebelde, insolente e provocadora, Betsy é aquela que mais disputa pelo controle do corpo/mente de Elizabeth.

Mesmo que Shirley Jackson não tenha sido uma autora diretamente vinculada à Psicanálise, é impossível ignorar como O Ninho do Pássaro dialoga com ideias que estavam em efervescência no século XX, período em que a psicanálise ganhava enorme força cultural. Jackson viveu justamente numa época em que teorias sobre o inconsciente, repressão, dissociação e múltiplas camadas da personalidade estavam no centro dos debates sobre a mente humana e isso fica muito evidente no livro.

A fragmentação de Elizabeth ecoa conceitos psicanalíticos clássicos, como a cisão do eu, os mecanismos de defesa e a manifestação simbólica de traumas reprimidos. Mais do que usar esses elementos como referência teórica, Jackson demonstra, com enorme sensibilidade, a luta interna entre partes dissociadas da psiquê humana.

Para quem gosta de mergulhar na mente de personagens complexos, O Ninho do Pássaro oferece uma leitura intensa e reflexiva sobre identidade, memória, trauma e recuperação. Hoje em dia, o tema das "multiplas personalidades" já está bastante batido. O filme de 2016, Fragmentado, escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, talvez seja um dos exemplos de maior sucesso. Mas, pensar que Jackson escreveu sobre isso de forma tão inteligente e clínica em 1954 é surpreendente. Adorei!

Autora: Shirley Jackson ✦ Páginas: 264
Tradução: Débora Landsberg ✦ Editora: Alfaguara
Livro recebido em parceria com editora

4 de dezembro de 2025

Vale a pena investir na nova coletânea de ficção de Lovecraft publicada pela Penguin?

Howard Phillips Lovecraft (1890–1937) foi um escritor norte-americano considerado o grande nome do terror cósmico, um subgênero que ele praticamente criou. A proposta central de sua obra é a de que o medo mais profundo do ser humano é o medo do desconhecido e de tudo aquilo que está além da compreensão humana.

Enquanto autores como Edgar Allan Poe exploravam o terror psicológico e o horror íntimo, Lovecraft ampliou o olhar: seus personagens se deparam com forças cósmicas tão vastas e indiferentes que a simples percepção delas pode levar à loucura. São deuses ancestrais, criaturas abissais e realidades que desafiam a lógica. Entre os contos mais famosos estão O Chamado de Cthulhu, Nas Montanhas da Loucura e A Cor que Caiu do Espaço, histórias que combinam ficção científica, mitologia e filosofia.

Por outro lado, a obra de Lovecraft também carrega o peso de suas visões racistas e elitistas, algo amplamente discutido hoje em dia. Ele viveu em uma época de forte segregação racial nos Estados Unidos e expressou, em cartas e até em alguns textos, ideias preconceituosas. Pra você: dá pra separar o escritor de sua obra?

Diversas editoras já publicaram obras isoladas ou coletâneas com textos do autor. Mais recentemente, foi a vez da Penguin Companhia, uma das minhas editoras favoritas, que publicou um box com a ficção completa de H. P. Lovecraft, e eu achei que seria a oportunidade perfeita para revisitar esse autor que, embora não seja o meu favorito no gênero, é impossível ignorar.

Quando li Lovecraft pela primeira vez, eu não sabia nada sobre as polêmicas em torno dele. Entrei em sua obra completamente às cegas, movida apenas pela curiosidade e pela fama de seu terror cósmico. Eu já era uma grande fã de Edgar Allan Poe e as comparações que constantemente são feitas entre eles me deixaram curiosa. Lembro de ter lido Nas Montanhas da Loucura e ficado absolutamente fascinada pela forma como ele descrevia o desconhecido, já que tudo parecia tão vívido e impossível ao mesmo tempo. Era uma sensação física, uma ansiedade, como se eu realmente estivesse vendo aquelas coisas diante de mim e tentando compreender algo que a mente humana não deveria compreender.

Lovecraft tem esse poder: ele desperta um medo que não é apenas de monstros, mas do imensurável, do inominável, daquilo que existe além dos limites da razão. É o tipo de leitura que faz a gente se sentir pequeno, impotente, como se o universo fosse vasto demais e hostil demais para caber dentro da nossa compreensão. E mesmo que esse medo não seja confortável, ele é profundamente fascinante.

Tive uma experiência parecida lendo A Cor que Caiu do Espaço. É uma história que me deixou completamente confusa, tentando entender o que exatamente estava acontecendo, o que era aquela cor e como algo tão abstrato podia ser tão aterrorizante. Ao mesmo tempo, fiquei muito impressionada com o quanto Lovecraft escreve de forma quase cinematográfica. É uma narrativa estranha, densa, mas visualmente poderosa, que me deixou pensando o quanto seria incrível ver aquilo adaptado para o cinema.

O primeiro conto apresentado nessa coletânea da Penguin, Dagon, já prende e impressiona ao falar sobre um trauma tão profundo e doloroso que faz o narrador desejar a morte. Fica estabelecido ali o tom de toda a leitura que está por vir: sombrio, denso e perturbador. Essa coletânea também me colocou em contato com textos do autor que eu ainda não conhecia como, por exemplo, o pequeno conto denominado O Velho Terrível, que consegue ser surpreendende e assombroso em apenas 4 páginas. Ou ainda, Azathoth, que me surpreendeu pela linguagem poética e pelo belo e inesperado desfecho.

Então, afinal, vale a pena investir na nova coletânea de Lovecraft publicada pela Penguin? Na minha opinião, sim, e muito. Eu sou suspeita pra falar, porque sou realmente fã da editora, mas acho que o trabalho que eles fazem é incomparável. As edições da Penguin são simples, não têm nem orelha, nem aquele acabamento chamativo, mas são bem diagramadas e extremamente confortáveis.

Mas o principal: a tradução e a revisão são de qualidade, o que faz toda a diferença em um autor tão denso quanto Lovecraft. São livros feitos para serem lidos, não apenas exibidos na estante. Claro que existem outras edições mais bonitas, como a da DarkSide, que é lindíssima e até brilha no escuro, mas quando o assunto é qualidade editorial e experiência de leitura, a Penguin continua imbatível. Então, se você quer se aventurar pelo terror cósmico de Lovecraft, essa coletânea é, sem dúvidas, uma ótima escolha.

Autor: H. P. Lovecraft ✦ Páginas: 1640
  Tradução, organização e introdução: Guilherme da Silva Braga ✦ Editora: Penguin Companhia
Livro recebido em parceria com editora
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29 de novembro de 2025

Caminho para o Grito, de Jarid Arraes, e a capacidade que só os poemas têm de dizer o indizível


Caminho para o Grito foi meu primeiro contato com a escritora, cordelista e poeta Jarid Arraes. Na coletânea, a autora nos apresenta ao que tem sido descrito como sua obra mais pessoal e corajosa: um livro que aborda memórias de abuso sexual, pedofilia e explora as marcas duradouras desses traumas.

De cara, já me deparei com um texto que fala sobre o quão cotidiano é o estupro. Jarid inicia sua coletânea de poemas com um "não-poema", e justifica:

[...] eu poderia fazer
deste poema
uma denúncia
um manifesto
uma crônica
um campo aberto
mas minha amiga
foi estuprada ontem
minha amiga foi
estuprada
hoje
e nada mais
merece
verso

Jarid escreve com sutileza sobre coisas brutas. Com palavras bonitas, ela fala sobre coisas terríveis. E utiliza-se de sua escrita para falar sobre acontecimentos e sentimentos que são muito difíceis de abordar, "mas pelo menos finalmente estou falando disso".

O livro reúne quase 50 poemas, divididos em três partes, que acompanham as primeiras violências de sua infância às consequências em sua vida adulta. A leitura não é e nem pretende ser fácil. Afinal, os versos revelam imagens cruas que tornam palpável a violência e suas consequências.

As temáticas abordadas pela poeta são dolorosas, incômodas e, por vezes, perturbadoras. Tenho lido muita poesia escrita por mulheres e percebo que quase sempre elas relatam dores profundas, principalmente àquelas ligadas à violência de gênero. Não porque essas autoras gostam de abordar esses temas terríveis, mas porque a poesia oferece um espaço onde o que é traumático pode finalmente existir.

A linguagem poética permite dizer o indizível e transformar memórias brutais em ritmo, sem reduzir a experiência a uma transcrição fria, mas também sem transformá-la em espetáculo.

Desde que existe, a poesia tem sido um espaço onde a humanidade coloca aquilo que não cabe em nenhum outro lugar. Quando uma poeta escreve sobre violência, abuso ou trauma, ela cria um lugar onde a dor pode ser reorganizada, encarada de frente e, às vezes, compartilhada de modo a produzir sentido.

Quando algo é muito traumático, muito íntimo ou muito complexo, o discurso comum, lógico e linear parece não dar conta. Vocês já perceberam isso? Quanto mais complexa é a experiência, mais sentimos a necessidade de "poetizar". Isso acontece porque a poesia rompe com a rigidez do discurso

A poesia usa imagens e metáforas para expressar o que é quase inexpressável. Por isso ela se encaixa tão bem em temas dolorosos: ela não precisa explicar, ela pode mostrar e/ou sugerir.

Meu primeiro contato com Jarid foi certamente memorável. Seus poemas me entristeceram e enraiveceram. Apesar de o livro ter apenas 80 páginas, foi uma leitura densa e poderosa. Recomendo que sua leitura seja feita com cautela e cuidado.

Autora: Jarid Arraes ✦ Páginas: 80
Ilustrações: Gabee Brandão ✦ Editora: Alfaguara
Livro recebido em parceria com editora
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25 de novembro de 2025

Lapso, de Ren Nolasco e Márcio Moreira: Uma HQ belíssima, mas muito confusa


Lapso é uma HQ linda. Visualmente, é de encher os olhos. As cores são vibrantes, intensas, e criam uma atmosfera outonal que combina perfeitamente com o tom misterioso da história. O laranja e o azul dominam as páginas, e juntos criam um contraste que é, ao mesmo tempo, aconchegante e desconcertante. É o tipo de arte que dá vontade de folhear devagar, só pra apreciar cada quadro.

A protagonista é a Verônica, uma bruxa desempregada que vive na companhia de seu bichinho de estimação, Cocota, e que está determinada a alavancar a sua carreira como vidente, inclusive comprando uma estrela. Um dia, Verônica está dirigindo até o mercado e acaba atropelando uma pessoa. A partir daí, tudo começa a se fragmentar. Lapsos de tempo, aguá, uma floresta, um gato preto, um alienígena e uma narrativa que vai se embaralhando de propósito. Verônica está perdida entre tempos e espaços, e o leitor também. A confusão é parte da experiência, já que o roteiro quer que a gente sinta o mesmo desencaixe que ela sente.

Mas, sinceramente, achei Lapso confusa DEMAIS. É aquele tipo de história que só dá pra entender o todo lá no final, e aí vem aquela sensação de “agora até que faz sentido.. eu poderia reler e, dessa vez, eu compreenderia". Mas, foi uma leitura tão cansativa (apesar de curta) que eu não quis ler de novo. A estrutura circular, as repetições de cenas e os saltos temporais criam um efeito interessante, mas também cansativo.

Eu também preciso dizer que, pessoalmente, já tenho uma certa dificuldade com a linguagem das histórias em quadrinhos. Acho que é um formato naturalmente mais abstrato, que exige um tipo de leitura diferente, mais visual e simbólica, e isso, pra mim, sempre foi um desafio. Então, como Lapso já é uma HQ sobre lapsos temporais, essa complexidade toda acabou tornando a experiência ainda mais difícil. Talvez essa sensação de confusão que tive tenha mais a ver comigo do que com a própria obra.

Apesar de toda a confusão temporal, Lapso tem um humor muito gostoso. É uma história leve, com personagens modernos, que falam e agem de um jeito bem jovem, quase adolescente. As interações têm aquele toque irônico e divertido, que quebra o clima misterioso e deixa tudo mais dinâmico. Talvez por isso a HQ funcione especialmente bem com um público mais jovem, que vai se identificar com o ritmo rápido, o humor inteligente e a linguagem contemporânea dos personagens.

Mas Lapso não é só humor e confusão temporal. No fundo, essa HQ é também uma história sobre autodescoberta. Verônica está tentando se encontrar, entender quem ela é e qual caminho quer seguir. Ela trabalha como bruxa vidente e busca se firmar nessa profissão pouco convencional, enquanto lida com a pressão de fazer algo mais “seguro”, como prestar o Enem e seguir uma carreira tradicional. Esse conflito entre o que o mundo espera de você e o que você realmente quer ser é algo muito humano, especialmente na juventude. Por isso, reforço que, na minha opinião, Lapso acaba conversando melhor com quem está nesse processo de se descobrir, de se aceitar e de escolher seu próprio caminho.

Pra mim, Lapso é uma HQ que vale a pena pela estética. A arte é lindíssima, a paleta de cores é deslumbrante, e o clima de mistério prende. É uma leitura rápida, dá pra terminar em 30 ou 40 minutos, mas que deixa a mente girando um pouco depois. Não sei se amei, mas certamente não vou esquecer.

Título Original: Lapso ✦ Autores: Ren Nolasco e Márcio Moreira
Páginas: 144 ✦ Editora: Suma HQ
Livro recebido em parceria com editora

18 de novembro de 2025

Alchemised, obra de SenLinYu que começou como uma fanfic de Harry Potter, vale essa comoção toda?

Alchemised quase dispensa apresentações. Começou como uma fanfic de Harry Potter e conquistou uma legião de leitores online. O sucesso foi tão grande que acabou se transformando em um livro publicado, prometendo entregar a mesma emoção e intensidade da fanfic, mas dentro de uma nova história com um universo e sistema de magia completamente originais. Eu nem sou uma grande fã de Harry Potter, mas cresci assistindo os filmes, portanto, esse universo faz parte das minhas referências mais remotas.

Antes de ser Alchemised, a fanfic se chamava Manacled e era um romance entre Draco e Hermione numa versão da saga em que Harry Potter morre e Voldemort vence a batalha. Em Alchemised, Draco e Hermione se tornaram Kaine e Helena. E é aqui que surge a primeira grande dificuldade de transformar uma fanfic em uma história original. Quando você inicia a fanfic, já há muita emoção envolvida, porque conhecemos aqueles personagens. A dor da Hermione é real porque a vimos crescer (nos livros e/ou nos filmes). Já na história original, SenLinYu precisou nos dizer e nos convencer de que Helena estava devastada com o desfecho da guerra, o que não tem o mesmo impacto.

Mas fica ainda mais difícil. Em Manacled, SenLinYu não precisou criar um universo e um sistema de magia. Afinal, eles já existiam. No entanto, para ser publicado como uma história original, SenLinYu precisou criar tudo do zero. E será que conseguiu? Bom, na minha opinião, não. O universo criado para Alchemised é confuso, incoerente, cheio de falhas e parece um recorte de um monte de coisa que já existe, só que mal feito. SenLinYu até tenta, e muito, incansavelmente, por muitas e muitas páginas, explicar e dar sustentação para esse mundo, mas nada faz muito sentido, muita coisa fica sem resposta ao final do livro e há diversas contradições (como dizer que animantes são raros e, ao final do livro, uma galera era animante em segredo 🤡).

A proposta até chama atenção: um mundo de alquimia, segredos e moralidade cinzenta. Mas o que poderia ser um universo rico e fascinante acaba se perdendo em um enredo confuso, mal explicado e repleto de inconsistências. O livro é extenso (MUITO extenso) e boa parte dessa extensão se deve à repetição. Repetição de ideias, de falas e de situações que não acrescentam muito à trama. Em vários momentos, senti que estava lendo a mesma cena sob uma luz ligeiramente diferente. Por exemplo, quando SenLinYu tenta nos mostrar como Helena é mal tratada pela resistência. Ela nos mostra isso uma, duas, dez, cinquenta vezes e OK, JÁ ENTENDI.

O maior problema, talvez, seja o desequilíbrio entre a ambição de SenLinYu e a execução. Há uma tentativa de criar algo grandioso e denso, mas o resultado é um mundo que soa inacabado, com regras vagas, confusas e inconsistentes. A leitura acaba se tornando cansativa, e é difícil se manter investido quando a lógica interna da história não se sustenta.

Certo, não funciona como fantasia... Mas e como romance? Afinal, era assim que se vendia quando ainda era uma fanfic Dramione. E, de novo, não, não funciona como romance também. O casal principal é tão insosso quanto o próprio enredo, com um slow burn que não desperta expectativa nenhuma e interações que carecem de química real. Tudo soa previsível e recheado de clichês, com declarações grandiosas e frases que causam vergonha alheia, como o clássico “você é minha”.

Alguns momentos, principalmente mais próximos do fim da guerra, quando as coisas já estão num nível de tensão realmente elevado, até são interessantes. O medo que eles têm de perder um ao outro, já que estão, tecnicamente, em lados opostos da guerra e não podem estar juntos em momentos críticos, é de fato tocante. A angústia para se verem e se certificarem de que o outro está vivo e sem ferimentos dá certa emoção à história. Mas nem de longe é o suficiente para deixar a leitura menos cansativa.

E se o romance não convence, a estrutura da narrativa também não ajuda. O livro é dividido em três partes. A primeira parte já no pós-guerra, quando Helena desperta sem partes importantes de sua memória e é enviada para Kaine, para que ele possa descobrir o que ela reprimiu. A segunda parte é a maior e conta o que aconteceu na guerra, ou seja, trata-se de um flashback, que vai contar tudo que aconteceu para chegarmos no ponto em que a história iniciou. A terceira parte é o que acontece depois. Ou seja, é como se a ordem cronologica fosse: parte 2, parte 1 e parte 3.

A primeira parte é bem confusa e cansativa, pois é onde SenLinYu explica seu universo e estabelece as regras e o sistema de magia. A segunda parte é repetitiva e desnecessariamente longa, já que a gente já sabe qual vai ser o desfecho. A terceira parte tinha tudo pra ser a mais interessante, mas eu já estava tão cansada que só queria que acabasse logo. É muito triste terminar um livro e pensar “finalmente acabou!”, mas, infelizmente, foi exatamente assim que me senti.

Antes mesmo de sua publicação, as pessoas já falavam sobre como era um livro emocionalmente denso, com cenas pesadas e gráficas e cheio de gatilhos. Eu não sou muito impressionável quando se trata de leitura e, particularmente, não achei tão pesado. Também vi alguns fãs da fanfic dizendo que SenLinYu suavizou esses aspectos para o livro original, então provavelmente tenha sido isso. A cena que, na minha opnião, poderia ter sido a mais pesada, pois envolve violência sexual, é descrita de uma forma tão confusa que não sei se teve realmente o efeito desejado. Fora que SenLinYu se esforça muito para suavizar tudo que Kaine faz, até as coisas mais atrozes. É evidente que elu queria que não o víssemos como vilão, mas apenas como alguém forçado a se fingir de mau.

A Debs Costa do @plotpersuits falou algo que eu concordo plenamente: no processo de leitura de Alchemised, o leitor precisará preencher lacunas com aquilo que ele previamente sabe porque ele leu/assistiu Harry Potter. Isso acontece em vários momentos do livro. Há muitas lacunas e a gente só consegue preenche-las quando relacionamos com o universo de Harry Potter. A pergunta que fica é: Alchemised deixou mesmo de ser uma fanfic? A resposta, obviamente, é não. Porque, se tivesse deixado, conseguiria existir e se sustentar sem que o leitor precisasse ficar resgatando o universo de Harry Potter para compreender o livro.

Sobre os personagens, é até difícil pensar em algo relevante para dizer. Luc, que seria o Harry Potter, é quase que completamente irrelevante para a história. Como líder de uma resistência é até estranho como tudo acontece sem ele saber ou estar presente. Sendo um livro de guerra, era de se esperar que houvesse muitas mortes ao longo da história. E até há, mas é triste dizer que eu não senti nada. Não me afeiçoei a nenhum personagem. Livros muito menores conseguem criar conexão entre leitor e personagens, e esse, com quase mil páginas, não conseguiu. A única personagem de quem eu gostei foi Helena, mas me incomoda o tanto que dizem que ela é inteligente e eu quase não consegui ver essa inteligência. O livro todo é ela sendo a última a saber, a última a entender e a última a descobrir. Hermione é inteligente; Helena é uma songa monga (mas ela é legal 👍🏻).

No fim das contas, Alchemised foi decepcionante. Eu estava curiosa e empolgada com a leitura e me esforcei para gostar, mas não teve jeito. Os furos na história, a extenção desnecessaria e o romance xoxo não conseguiram me manter investida. Entendo o apelo da obra como fenômeno, especialmente para quem acompanhou a fanfic e tem uma conexão afetiva com ela. Mas, isoladamente, Alchemised não se sustenta como romance original. É um daqueles casos em que o entusiasmo dos leitores e o hype acabam sendo mais interessantes do que o livro em si. Inclusive, vi fãs da fanfic criticando também, então acredito que esse processo de transformar a fanfic em obra original realmente desgastou a história e a fez perder qualidade.

O resultado é uma história que tenta ser épica e intensa, mas acaba sendo apenas longa e cansativa. Há uma ambição visível, mas pouca coerência, e a magia, tanto literal quanto emocional, simplesmente não acontece.

Título Original: Alchemised ✦ Autore: SenLinYu ✦ Páginas: 960
 Tradução: Helen Pandolfi, Laura Pohl, Sofia Soter e Ulisses Teixeira ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com editora

14 de outubro de 2025

Katábasis, nova fantasia dark academia de R. F. Kuang, é um "passeio" pelo Inferno

Um dos lançamentos mais aguardados do ano, de uma das autoras mais elogiadas dessa geração, chegou. Eu estava ansiosíssima para ler Katábasis e para vir dar a minha opinião pra vocês. Kuang já é conhecida pela escrita envolvente, pelas histórias complexas e por suas críticas ferozes e, com Katábasis, ela prometeu mais uma história no estilo dark academia, só que, dessa vez, o cenário é o inferno. E eu, como uma apaixonada por A Dívina Comédia de Dante Alighieri, fiquei imediatamente animada.